O enorme letreiro dourado velho diz "1904" mas a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau só ali está, na esquina da Rua Augusta com a de São Nicolau, desde 4 de maio. Com os seus toldos em dourado rendilhado, mais os brasões em poliuretano a imitar bronze "antigo", o segurança espadaúdo à porta, vigiando o corrupio de turistas que entre a loja e a esplanada equilibram os enormes pastéis em pires de cartão e o som de vozes fadistas que das 10.00 às 20.00 ecoam cá fora, grita tanto por atenção que, ao lado, uma das mais antigas e belas lojas da Baixa, a cafeeira Pereira da Conceição, de 1930, parece ter desaparecido, ofuscada por tanto elemento dissonante. Aos quais se juntavam, até à última sexta-feira de maio, quando foram retirados, por intimação da câmara e em resultado de queixas e do burburinho nas redes sociais, enormes placards, tapando as janelas de sacada do primeiro andar, com a imagem de um pastel a escorrer queijo - o ex-líbris do estabelecimento, que apregoa a originalidade de um "pastel de bacalhau com queijo da serra".. Estavam, esclarece a autarquia, em infração do Plano de Salvaguarda da Baixa Pombalina. Como estão também os letreiros - "A utilização de elementos publicitários em fachadas dos edifícios acima do piso térreo depende do uso. Com o atual uso está em situação irregular. A CML já notificou o proprietário" - e os toldos: "Só são admitidos toldos de modelo direito, rebatíveis ou de enrolar, sem abas laterais e em lona ou tela não plástica, não sendo permitido o uso de materiais brilhantes ou refletores. O proprietário terá de alterar os elementos. Deverá ser dado tempo para a adaptação." Mas este parecer negativo da câmara, cuja data o DN não conseguiu apurar, colide parcialmente com o da Direção-Geral do Património Cultural, dependente da Secretaria de Estado da Cultura, o qual, a 20 de abril, assinado pelo subdiretor-geral João Carlos dos Santos, estabelece poderem os placards nos vãos das janelas do primeiro andar manter-se durante três meses e os letreiros mais três, "atendendo às obras programadas de conservação e beneficiação exterior do imóvel". O que, curiosamente, contradiz também a apreciação da técnica superior da DGPC Fátima Ferreira, que a 7 de abril via como permissíveis os toldos e os brasões mas apontava para a proibição da afixação dos letreiros, "tendo em conta o precedente que tal autorização abriria numa área classificada tão importante como é a Baixa Pombalina", considerando que os placards nos vãos só poderiam estar patentes "por um prazo máximo de três meses durante o decurso da obra, anunciando a abertura do estabelecimento". .Uma diversidade de decisões que a empresa proprietária da Casa dos Pastéis, a Patrimus Indústria, também detentora do Museu da Cerveja, no Terreiro do Paço, e das mercearias Silva & Feijó (duas das quais na Baixa) critica, pela voz do sócio Fernando Fernandes, insinuando que a própria câmara tem dois pesos e duas medidas: "Por que é que o prédio da Seaside, em frente ao nosso, pode ter as janelas tapadas com cartazes e a nós nos mandaram tirar?".O vereador da tutela, o socialista Duarte Cordeiro, dá a mão à palmatória - "O outro estabelecimento está de facto a usar publicidade de forma abusiva, temos de notificar e retirar" -, mas assume a sua perplexidade face à posição do organismo governamental. "De um modo geral assumimos os pareceres deles, mas desta vez fomos mais restritivos. Até porque a DGPC, apesar de citar o Plano de Salvaguarda, não o teve em consideração. E já sucedeu antes dar pareceres distintos para lugares que achamos que devem ter o mesmo enquadramento. É algo que faz confusão e que estamos a tentar perceber.".Confusão causa também o facto de a câmara admitir que agiu devido a queixas. Não existe fiscalização permanente numa zona classificada e tão pressionada como a Baixa? "Os licenciamentos comerciais não são controlados pela Câmara", justifica o vereador. "E as queixas têm um papel importante na atuação do município. Mas é necessário repensar os enquadramentos existentes.".Igualmente difícil de entender é que, determinando serem os letreiros e toldos incompatíveis com o local, a Câmara os permita por tempo indeterminado (até a empresa arranjar uma solução), contribuindo para a ideia de que não atua e que tudo é possível na Baixa. Isso mesmo observa Paulo Ferrero, fundador do Fórum Cidadania LX, grupo do Facebook onde se discute a cidade, e membro do conselho consultivo do projeto Lojas com História, criado recentemente pela autarquia para distinguir estabelecimentos que, pelos seus "elementos urbanísticos, culturais e económicos", "mais diferenciam Lisboa". Exatamente o contrário daquilo que considera ser a Casa dos Pastéis, contra a qual apresentou uma queixa à DGPC e qualifica como "aberrante". Mas sê-lo-á mais que muitos outros numa zona que há décadas vem sendo desfeada? Não estará a Casa dos Pastéis a erigir-se, pela sua novidade, em bode expiatório de toda a irritação com aquilo que no Fórum Cidadania Lx se descreve como "a transformação da Baixa em disneylândia turística"? "As pessoas reagem porque aquilo é de um mau gosto atroz", pontifica Ferrero, "Mas de facto é mesmo um símbolo de tudo o que nos irrita.".Um sucesso "graças a Deus". A Patrimus contra ataca, em resposta enviada por escrito: "A Baixa pombalina é (...) um showroom onde não faz sentido existirem lojas escuras, fechadas, envelhecidas, nem restaurantes decorados com fotografias de bitoques e francesinhas, e muito menos vendedores de estupefacientes (...). Se é esta a Baixa "característica", então, de facto, não queremos ser pactuantes com ela. Queremos muito, e assumimo-lo como missão, nivelar a Baixa por cima." E refuta, pela voz de Fernando Fernandes, que a data "1904" na fachada, associada ao dourado "velho" e ao tipo de letra, vise levar ao engano. "Não é questão de fazer parecer antigo. 1904 é a data da primeira receita publicada de pastel de bacalhau. As pessoas interpretam como quiserem.".Com uma fabricação diária de 1000 pastéis, vendidos a 3,75 euros cada (com cerca de 100 gramas, têm o dobro do tamanho habitual), o negócio, que dá trabalho a 30 pessoas - 16 na loja e 14 na fábrica, situada na Rua dos Bacalhoeiros - é assumido por Fernandes como "um sucesso, graças a Deus". E aos turistas, cuja multiplicação nos últimos tempos o empresário considera outra bênção, desconsiderando os protestos: "Ainda bem que os lisboetas se sentem acossados pelos turistas."