O chinês que aprendeu a tocar com Tom e Jerry
Número um' era a frase que o meu pai - e, por isso, a minha mãe - estava sempre a dizer. Era a frase na boca dos amigos dos meus pais e dos filhos deles. Havia sempre um número um. O operário número um, o cientista número um, o mecânico número um. Na cultura da minha infância ser o melhor era tudo. Se por sorte se fosse uma criança em que o talento era uma evidência, o número um tornava-se o teu destino. E tornou-se o meu."
Lang Lang, 28 anos, escreve como se toda a sua vida coubesse numa partitura ou se pudesse contar com as 88 teclas de um piano. O talento para a música traçou-lhe o destino, é certo. Mas também fez dele um prodígio da China: o rapaz do bairro de operários de Shenyang que cresceu para correr o mundo a tocar, numa "viagem de mil quilómetros", como o título da autobiografia.
Há quem lhe chame o pianista do momento. Lang Lang toca um solo na Praça Tiananmen na abertura os Jogos Olímpicos de Pequim, junta-se à Filarmónica de Berlim sob a batuta de Sir Simon Rattle, enche o Royal Albert Hall, em Londres, corre para gravar com Plácido Domingo, Cecilia Bartoli e Andrea Bocelli e é um dos músicos na cerimónia da entrega do prémio Nobel da Paz a Barack Obama.
Os seus discos surgem nas prateleiras das lojas interpretando obras de Haydn ou Mozart. Mas ele dispensa a cabeleira branca de caracóis e os longos casacos de veludo. Tem um ar de estrela rock que arrasta multidões para onde quer que vá. Ou não fosse ele um número um.
Lang Lang tinha apenas dois anos quando se apaixonou pela música a ouvir o gato de Tom and Jerry tocar a Rapsódia Húngara nº 2 , de Franz Liszt. Os pais - músicos cujos sonhos de vida a Revolução Cultural atropelou - compraram-lhe um piano em que ele começou a tocar todas as músicas que ouvia na televisão. Quando tinha cinco anos - era tão pequeno que tocava de pé para chegar aos pedais - venceu uma competição com a rapsódia de Liszt e uma sonata de Mozart. Descobriram-lhe o talento, traçaram-lhe o destino.
Na escola primária levantava-se às seis da manhã para ensaiar seis horas por dia. A carreira ficou quase comprometida três anos depois. Lang Lang estava a preparar a audição para entrar no Conservatório Central de Pequim, mas as lições corriam mal e o seu tutor abandonou-o por considerar que ele não tinha talento. Um erro.
Lang Lang viajaria para Pequim e, em 1995, venceu o prémio Tchai- kovsky para os jovens músicos no Japão com um recital com peças de Chopin. "Eu era muito novo pa- ra compreender o sentimento de amor não correspondido de Chopin. Por isso, o meu pai disse- -me para pensar numa paisagem bonita e na minha mãe. Foi a fórmula perfeita."
Uma fórmula que é como uma poção mágica que o inspira e faz dele um músico de instinto e repentismo, que leva uns críticos a dizer que ele é um génio e outros tantos a chamarem-lhe vaidoso.
A todos, Lang Lang ignora. "Eu sou quem sou. Não os levo a sério. Quando começamos a ceder na nossa arte, nós perdemo-nos".