Igrejas queimadas
Leio as notícias de mais de uma dezena de igrejas queimadas no Paquistão e recordo-me da conversa, numa salinha da casa anexa à Catedral de São Patrício, que tive com o arcebispo de Carachi em 2001, em que este relembrava que apesar de o Paquistão ter sido criado como pátria para os muçulmanos da Índia, o fundador, Mohammed Ali Jinnah, estipulara que todas as crenças seriam respeitadas no novo país. Simeon Pereira tinha raízes goesas, e a sua família tinha-se instalado em Carachi ainda no tempo colonial, antes de em 1947 a Índia britânica ter sido dividida entre o Paquistão de Jinnah e a Índia de Jawaharlal Nehru e do Mahatma Gandhi.
Hoje, 96% dos mais de 200 milhões de paquistaneses são muçulmanos. Os cristãos são cerca de 2,5 milhões, entre católicos e protestantes. Os de origem goesa estão bem representados nas elites, mas a grande massa de cristãos são populações rurais do Punjabe, a principal província paquistanesa. E sofrem muito com a discriminação e muitas vezes acusações de blasfémia, com vizinhos irritados com disputas do quotidiano a dizerem, por exemplo, que ouviram palavras insultuosas. Desta vez, a destruição de igrejas em Jaranwala seguiu-se à acusação de que dois homens terão desrespeitado o Alcorão, o livro sagrado do islão.
As autoridades paquistanesas vieram em socorro dos cristãos atacados pela multidão incentivada por extremistas, e o primeiro-ministro interino condenou de imediato a violência. Porém, a lei da blasfémia, vinda da era colonial mas agravada com pena de morte nos anos 1980, traz sérios desafios à igualdade perante a lei, mesmo que não tenha sido aplicada nunca judicialmente a sentença capital (embora já tenha havido linchamentos). Um ministro cristão foi assassinado em 2015 por criticar esta lei, tão suscetível de abuso. E o terrorismo islâmico, cujas bombas matam sobretudo muçulmanos, também destina o seu ódio às minorias religiosas e tudo vale para criar violência.
Jinnah não acreditava que os muçulmanos fossem tratados em plano de igualdade numa Índia governada pela maioria hindu e por isso exigiu um país separado aos colonizadores britânicos. Mas nem a trágica troca de populações em 1947 acabou com as minorias de um lado e do outro. No Paquistão também há hindus, e na Índia os muçulmanos são hoje tantos milhões como no Paquistão. Cristãos, sikhs, budistas, jainistas, parsis e até judeus vivem há séculos na Ásia do Sul, por entre hindus e muçulmanos, e têm direito a estar na sua pátria, qualquer que seja, como cidadãos de pleno direito. Mesmo na Índia há ocasionais denúncias de perseguição, pelo que 76 anos depois da dupla independência (14 de agosto no caso do Paquistão, 15 de agosto no caso indiano) os governantes de Islamabad e de Nova Deli, duas democracias, têm de lutar por convencer as suas sociedades de que a tradicional diversidade é uma bênção e punir os extremistas. Desta vez, porém, cabe ao Paquistão honrar a memória do pai fundador e proteger as igrejas de Jaranwala.
Diretor adjunto do Diário de Notícias