Em Lisboa a pensar nas Obras do Fidalgo
Sempre que passo de carro perto dali, faço um desvio para ir ver as Obras do Fidalgo. Fica perto de Marco de Canaveses, em Vila Boa de Quires, e é uma quase alucinação. Uma fachada enorme de pedra trabalhada com pormenores de cantaria de artista, a única parte construída daquilo que seria um enorme solar barroco. Está ali há três séculos, sem a função que lhe queria dar quem a mandou construir. Tem uma utilidade diferente, mas tem: a de nos deixar intrigados e maravilhados.
Não sei por que me apareceu de repente na memória esta construção que poderia ter divertido Vinicius de Moraes quando escreveu "Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada". Mas esta tem uma história - ou o que dela se sabe através dos testemunhos da família e dos documentos oficiais. E tem também toda uma lenda que envolve o suposto suicídio do suposto arquiteto espanhol convidado pelo proprietário para construí-la, nublosa como convém a uma lenda que se preze.
O facto é que as Obras do Fidalgo estão assim há 250 anos, ao longo dos quais não só floresceu a imaginação como uma fabulosa teia de carvalhos que se transformaram no teto inexistente. Gosto sempre de efabular sobre espetáculos de música - de ópera! - ou de teatro que ali teriam um cenário extraordinário, mas ao mesmo tempo sinto que aquela solidão é mais forte do que qualquer presença que lhe fosse imposta. O sossego daquele lugar é mágico.
Não sei se me lembrei das Obras do Fidalgo por uma coincidência. Quem mandou construir o solar de Vila Boa de Quires foi António de Vasconcelos Carvalho e Menezes. Lembrei-me deste nome quando soube que está em risco de ter a fachada alterada um edifício dos anos 1970 do Largo Rafael Bordalo Pinheiro, em Lisboa, para ali nascer um hotel "de estilo pombalino".
Compreendo lindamente que alguém queria ter em Lisboa um hotel de estilo pombalino, mas não compreendo que não vá diretamente ao assunto e compre um dos muitíssimos edifícios realmente pombalinos da cidade. Alguns estão mesmo a pedir que os recuperem e transformem.
O investidor resolveu desfazer a cara de um prédio que atesta uma época mais recente. Devia ter sido construído ali e daquela maneira? O que estava lá antes? Não tenho respostas para estas perguntas, sei apenas que a obra foi muito discutida na época. Aquela construção hoje faz parte daquele lugar e, a ser substituída, era preciso que houvesse razões fortíssimas que o aconselhassem. Neste caso, nem os serviços camarários concordam com a alteração, o que faz pôr em dúvida a qualidade do projeto.
O nome do ceramista cujos azulejos cobrem este edifício é António Vasconcelos Lapa, um artista que ensinou muitos jovens nos 30 anos em que foi professor. O ateliê dele é um pequeno mundo exuberante de onde saem peças que invadem lugares como a Casa Andresen do Porto ou o Jardim Botânico, ou galerias, ou museus.
Uma cidade não é um cenário sem vida dentro e incomoda-me a ideia de andarem por aí a fazer pastiches. Quando o Chiado ardeu, Álvaro Siza Vieira escolheu regressar ao rigor pombalino, dando-lhe o conforto dos tempos de hoje. Já quando fez o extenso edifício de habitação na Rua do Alecrim não sentiu necessidade de recriar o que existia, embora tenha respeitado a métrica pombalina. Mas deixou o seu traço, a sua marca e com uma enorme qualidade.
Com o toque de magia da reconstrução do Chiado ardido, ele fez reviver uma zona que tinha perdido o fulgor, e nesse regresso às origens pombalinas repôs até passagens e pátios desaparecidos. Hoje, o Chiado é o que é, não o que foi nos tempos das tertúlias dos escritores e pintores dos velhos tempos, porque não é assim que se vive agora.
Estamos constantemente a sobressaltar-nos com o risco de fecharem lojas como a Tabacaria Martins, no Loreto, ou o Paris em Lisboa, na Rua Garrett, que sobreviveram miraculosamente a todas as dificuldades até agora, quando uma lei cega do arrendamento vem pô-las em causa. Porque gosto do Chiado e tenho muita pena de que a Baixa ainda não tenha sido devidamente valorizada? Porque ali encontro uma mistura de passado e presente, das retrosarias históricas da Rua da Conceição, do Rei das Meias e da pastelaria Bénard até às lojas mais modernas. Onde a Nespresso convive com a Casa Pereira sem choque. Eu sei que as lojas antigas são antigas - e a livraria mais antiga do mundo é aquela Bertrand - e que as novas são novas. Não vou ao engano.
E é por isto tudo, tão contraditório e discutível como as ideias sobre a vida das cidades, que regresso às Obras do Fidalgo. Qualquer tentativa de completar a construção poderia ter criado um solar que até poderia ser magnífico, vivo e habitado, mas dificilmente nos traria o impacto daquele lugar. E é quase certo que eu não faria um desvio na estrada para ficar uns momentos parada a olhar e a imaginar histórias.