Carta aberta ao Presidente da República

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Senhor Presidente da República

Espantei-me ao ler, na mensagem de condolências que enviou à família de José Saramago, a sua opinião de que este foi "justamente galardoado com o Prémio Nobel da Literatura". Partilhando eu embora dessa opinião, decorre a minha espantação do facto de V. Ex.ª ter chefiado um Governo que decidiu não ser o mesmo Saramago sequer digno de concorrer a um prémio europeu, quanto mais a um prémio de âmbito mundial, como certamente concordará ser o caso do Nobel.

Espantado fiquei ainda com a sua afirmação de que a "vasta obra literária [de Saramago] deve ser lida e conhecida pelas gerações futuras". Advém esta minha segunda espantação de ter ouvido não há muito tempo da sua boca (julgo que a propósito da polémica sobre Caim) a sorridente declaração de que já tentara ler o Memorial do Convento, mas não tinha sequer conseguido chegar ao fim! E a deliciosa malícia da expressão fisionómica que V. Ex.ª fez questão de exibir transmitia com clareza às "gerações futuras" o enfado que lhe provocara a corajosa tentativa e quão intragável seria, no seu apurado sentido crítico, a "vasta obra literária" de Saramago. A aparente contradição será talvez explicada pelo facto de V. Ex.ª não pertencer, comprovadamente, às "gerações futuras", escapando, assim, à patriótica obrigação.

No meu caso, em contexto semelhante, teria vergonha de enviar um telegrama de condolências como o que V. Ex.ª enviou. E teria ainda mais vergonha de o publicitar, não podendo deixar de imaginar os sorrisos e comentários irónicos que tal publicidade despertaria. Mas isso sou eu, talvez porque um porventura patológico optimismo me leve a acreditar que os meus prezados concidadãos não emburricaram ainda completamente.

Em alternativa, o que acima recordo não aconteceu e eu fui vítima de rapto por extraterrestres, que me implantaram cirurgicamente um conjunto de falsas memórias imerecidamente desprimorosas para V. Ex.ª. Ou então serei eu próprio um extraterrestre, com dificuldade em entender a complexidade dialéctica, trialéctica, ou mesmo polialéctica, dos terráqueos que povoam este quintal.

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