Berkana, ponto de encontro da Chueca

No bairro da Chueca, Lili Hernandez, dona da livraria, ajudou gente rejeitada pela família. Alguns até ameaçavam suicidar-se.
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Calle Libertad, Calle Almirante, Calle Augusto Figueroa, Plaza de Mella, Calle Fuencarral, Calle Hortaleza... são os nomes de algumas das ruas e pracetas que desembocam na Plaza Chueca, símbolo do orgulho gay em Madrid. Por este bairro, onde outrora, nos anos 70, se perseguiam e prendiam os maricones, a vida decorre hoje em dia sem sobressaltos. É "normal" verem-se casais de homens e de mulheres, de mão dada, abraçados, agarrados, às compras ou simplesmente por ali. É "normal" porque, como conta Mili Hernandez, a primeira mulher a assumir-se como lésbica em Espanha, dona da livraria Berkana, especializada em literatura e filmes para homossexuais, a "luta" pela igualdade de direitos foi longa, dura, mas valeu a pena.

Mili tem 50 anos. Antes de se instalar em Madrid, nos anos 80, viveu em Nova Iorque, no bairro de Greenwich Village, e depois uns tempos no Soho de Londres. "Quando vim para aqui havia quatro bares gay que só abriam à noite, bastante tarde, e era preciso tocar à campainha para entrar. A maior parte das pessoas desconhecia que eram frequentados por homossexuais", diz, deixando transparecer algum saudosismo dos tempos da "luta", palavra que sublinhou várias vezes ao longo da conversa. Da Chueca, lembra que era um bairro degradado, "com muita droga" e onde ninguém queria viver nem passar por lá. Agora, o preço de uma casa aqui vale o triplo do que custava naquela altura. Orgulhosa, aponta para os clientes de várias nacionalidades que entram na livraria, "gente que veio dos EUA, do Brasil, de Cuba, dos países de Leste porque Madrid tornou-se uma cidade símbolo da liberdade desde que foram apro- vados os casamentos gay, uma promessa de Zapatero, que foi cumprida e bem cumprida".

A Berkana fica na Calle Hortaleza, uma rua do centro de Madrid com muitas lojas, restaurantes e bares. À porta tem uma bandeira arco-íris içada, mas há muita gente que passa e não sabe o que significa. Três mulheres de uma certa idade entram e uma delas pergunta se têm livros escolares de filosofia - querem um qualquer de Platão - talvez para um dos netos que está a estudar. A empregada ri-se e responde que ali há apenas livros e DVDsobre homossexualidade. Sem perder a compostura, as três senhoras riem-se também, agradecem, e saem a falar baixinho umas com as outras. Mili comenta que estas situações acontecem muitas vezes, as pessoas são livres de entrar, de ver, "não peço o bilhete de identidade a ninguém". A verdade é que a Chueca cresceu "porque abri aqui a minha livraria" já vai para 16 anos. Por aqui, recorda, passaram muitos homens e mulheres desesperados porque não conseguiam contar a verdade às suas famílias. "Aqui evitei muitos suicídios" e sempre "funcionei como um serviço de atenção ao gay e à lésbica e aos transexuais. O primeiro mapa da Chueca foi feito nesta livraria."

Actualmente existem mais de 200 estabelecimentos neste bairro para clientela homossexual. Mas, há duas décadas, "éramos apenas quatro". O primeiro restaurante, que ainda existe, foi o "El armário", depois abriu uma florista, que já desapareceu, e dos bares mais antigos restam o LL e o Black and White. Há várias pensões e o hotel Oscar Room Mate que, apesar de pertencer a um casal de homens, apenas se identifica como gay friendly.

Os tempos são outros e a normalidade nasceu com a visibilidade. A Chueca é um símbolo de "revolta e militância" que ficará para a história de Madrid e de Espanha. Agora, Mili, que também é a proprietária da editora Egales, só pensa na tristeza de ter um dia que vender a sua livraria. "Todos lemos cada vez menos e já nada é tabu, verdade?"

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