António Fonseca conta 'Os Lusíadas'
Proposição
[Chama-se proposição ao momento em que, num texto épico, se procede à apresentação do tema e dos heróis envolvidos.] Porque se propôs o actor António Fonseca, de 52 anos, a dizer de cor Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões? «Foram muitos motivos misturados. Alguns anedóticos, outros mais sérios, mais fundamentados, em termos de reflexão sobre o que é o papel do actor. Ou qual é o meu papel cívico. Não sou padeiro, sou actor. Um padeiro faz pão e um actor conta histórias. Eu não sei fazer pão.» Sabe, porém, como tornar um texto com quatro séculos num espectáculo contemporâneo. A peça esteve em cena no Teatro Meridional, entre 25 de Novembro e 18 de Dezembro, e surpreendeu as centenas de espectadores que por lá passaram.
Para quem não teve oportunidade de se deslocar até ao Poço do Bispo, em Lisboa, saiba que António Fonseca regressará àquele espaço em Outubro do próximo ano. Parte, depois, em digressão pelo país. Coimbra, Aveiro e Guimarães são locais já confirmados. Nessa altura estará em cena «uma nova versão com os dez cantos. É um trabalho que pelo menos até Junho de 2012 estará sempre em progresso», confirma o actor.
Há três anos, António Fonseca arregaçou as mangas e decidiu empenhar-se em qualquer coisa que teria tanto de «brutal» como de «inútil». «Quando disse a um colega de profissão que estava a decorar Os Lusíadas, ele achou que era brutal e isso mexeu comigo. Parece que tudo o que se faz tem de ser assim. Não sei se o é, mas implica muito trabalho e nós não estamos habituados a trabalhar muito», diz. Por outro lado, assume que é uma «provocação quase vital». Quando por todo o lado se diz que «o país não presta, que isto está uma chatice, o que se deve fazer? Se calhar dar cabo da cabeça numa coisa inútil. Nem tudo tem de servir para alguma coisa. O azul do céu é inútil e o pôr do Sol também não serve para nada, mas existem e quando os vemos é... uau!»
Se é de razões que se trata, o actor tem uma mão-cheia delas. «A certa altura senti necessidade de estudar e inscrevi-me num mestrado. Mas não gostei nada da experiência e pensei que, em vez de fazer um mestrado ou doutoramento que não me serviriam para nada, preferia decorar Os Lusíadas.» E continua a enumerá-las. «Outra coisa que me levou a iniciar este projecto foi o complexo de culpa a que o texto está associado. Por um lado, a maioria das pessoas reconhece a sua existência e importância mas, por outro lado, poucos o leram.»
De qualquer forma, afirma que não é um texto fácil. «Para ler Os Lusíadas, mais do que Os Maias, de Eça de Queirós ou qualquer texto de Gil Vicente, é preciso ter uma competência técnica, gramatical, sintáctica, que as pessoas não têm, nem têm de ter. Mas ouvir Os Lusíadas todos podem ouvir. É como numa sinfonia: não sabes ler a partitura, mas ouves e podes curtir a música. Essa é a minha função: contar esta história, para que as pessoas possam conhecê-la, ouvindo.»
António Fonseca não é um marinheiro de primeira viagem. Licenciado em Filosofia, fez o Curso de Formação de Actores e seguiu a carreira de actor. A sua experiência no teatro é vasta e reconhecida. Em 1996, a Câmara Municipal de Oeiras atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Municipal grau Ouro e, em 2006, foi nomeado para melhor actor de teatro na Gala Globos de Ouro, da SIC.
Há cerca de dez anos lembrou-se de pegar no Sermão da Sexagésima do padre António Vieira e, desde essa altura, não parou de o apresentar em escolas secundárias, universidades e em eventos variados. «É um dos textos mais incríveis sobre a comunicação. Demora uma hora, mas prende a atenção dos miúdos com uma facilidade incrível. Em algumas escolas, os professores vinham ter comigo a dizer que davam aquele texto há vinte anos mas que nunca o tinham ouvido assim. A passagem para a oralidade muda e simplifica o entendimento.» É esse o exercício que pretende fazer agora com o texto de Camões.
Invocação
[Em que Camões invoca as ninfas do Tejo, a quem pede inspiração para escrever.] António não pediu auxílio às ninfas, mas procurou o conselho de profissionais para se preparar para esta maratona. «Falei com o professor João Lobo Antunes [director do Serviço de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa] para tentar perceber se um esforço tão grande e continuado de memória podia ter quaisquer implicações médicas conhecidas ou prováveis. Mas a conversa foi pouco conclusiva», diz. «Aconteceu numa altura em que, depois de duas a três horas de trabalho contínuo, ficava com dores. Parecia que as paredes da cabeça eram de cortiça e que não respirava. Vim a perceber depois que o trabalho que estava a fazer exige muito de nós fisicamente, causando uma ansiedade global.»
Em conjunto com o seu médico, António Fonseca adoptou uma profilaxia que deu resultado: «Em alturas críticas tomava um ansiolítico que me relaxava e repunha os níveis de energia nos sítios certos.» Por outro lado, tal como um atleta que se prepara para uma prova, também o actor assumiu a máxima «mente sã em corpo são» e mudou os seus hábitos alimentares. A carne passou a ser uma excepção na sua mesa, dando primazia ao peixe, legumes, fruta e cereais integrais. Diminuiu consideravelmente o número de cigarros e de café que consumia e começou a fazer natação, ioga e marcha. «O meu médico incentivou e aprovou este regime e reforçou com selénio, um complexo vitamínico e magnésio.»
Agora que o espectáculo começou e não pode parar, os cuidados foram revistos e melhorados. «Ao sábado, quando digo os cinco cantos, tento dormir nove a dez horas. O pequeno-almoço é o habitual: uma tigela de flocos de aveia integrais, cozidos em chá ou água, a que acrescento farelo de trigo, quinoa e sementes de linhaça moídas. Depois misturo mel e fruta. Segue-se um passeio pela mata do Estádio Nacional. Pelas duas, sirvo-me de um bom bife com esparguete, uma salada verde (com agrião, alface e rúcula, que tempero com gomásio ou sal de sésamo, e um fio de bom azeite do Douro), acompanhados de um copo de vinho tinto, receitado pelo meu médico.»
Nem mesmo durante o espectáculo são aceites deslizes neste campo: «Nos intervalos como barras de cereais com chocolate e, durante o espectáculo, bebo chá de perpétuas roxas com mel, indicado para a voz. Ao jantar, no intervalo do terceiro para o quarto canto, o menu inclui massa com salmão e brócolos e bebo outro copo de vinho. No fim do espectáculo vou para casa, que já dei para noitadas em bares.»
Dedicatória
[Dedicação do poema a D. Sebastião, incitando-o a fazer grandes coisas.] Na plateia há uma cadeira reservada para D. Sebastião, não vá dar-se o caso de o «rei-menino» aparecer para agradecer a obra que lhe foi dedicada. Só falta o nevoeiro porque, como diz o actor em palco, ficaria muito caro comprar uma máquina para os efeitos de fumo. Mas se não for el-rei a iluminar a sala, que seja o presidente da República, o primeiro-ministro ou a ministra da Cultura. Recados à época contemporânea, que salpicam o espectáculo e o trazem para os dias de hoje.
«Eu quero fazer uma actualização d"Os Lusíadas, não a sua arqueologia», afirma António Fonseca. «Quero contá-la neste tempo, porque as grandes histórias fazem sentido, inquietam, fazem rir e chorar, não só na altura em que são escritas como mil anos depois.» É só isso que António quer fazer da sua vida e da sua arte: fazer rir, chorar e inquietar. Entra em cena a discussão sobre qual deve ser a função do teatro e do actor. «O fenómeno performativo existe no momento em que está a acontecer. Eu não estou a dizer o texto de Camões, estou a inventá-lo no momento em que estou a dizê-lo. E faço um jogo duplo: por um lado "traduzo" algumas referências culturais da época, de onde vem o texto, e depois faço as referências actuais, para onde vai o texto.»
Um exemplo é o discurso de Nun"Álvares de incitação às tropas. «É muito actual, apetece perguntar o que andam a fazer esses grandes patriotas, que somos, no fundo, todos nós. O que andamos nós a fazer?»
Narração
[Narrativa da viagem de Vasco da Gama à Índia.] A história deste espectáculo começou há cerca de três anos e fez-se de acasos, ou intenções, conforme a crença de cada um. Por razões já anunciadas, o veterano actor António Fonseca dispôs-se a decorar Os Lusíadas e apresentou em Fevereiro de 2009 o Primeiro Canto na Sala de Espera da Oficina Municipal do Teatro, em Coimbra. Por um acaso, ou talvez não, uma jornalista estava na plateia e escreveu um texto que chamou a atenção do encenador Miguel Seabra, que telefonou a António e disse: «Quero entrar nisso contigo.»
A fórmula de apresentação escolhida era nova. «Isto não é um espectáculo, são vários. Cada canto é uma unidade e os cinco cantos são outra unidade. Cada um deles também faz sentido individualmente.» Por isso, foi possível comprar um bilhete único e ver os cinco cantos em dias diferentes sempre com o mesmo bilhete. Assim como se pôde ouvir uma selecção de episódios espalhados pelos cinco cantos, como o Concílio dos Deuses, a passagem pela ilha de Moçambique ou a batalha de Ourique.
Esta antologia foi dita de quarta a sexta-feira às 21h45, com a duração de hora e meia. Ao sábado ouvia-se os cinco cantos: a maratona começava às 17h00 e terminava à meia-noite. Cada canto tinha a duração aproximada de uma hora e separava-se do seguinte por um curto intervalo. Entre o canto terceiro e o quarto fazia-se uma pausa para jantar e retomar o fôlego.
Epílogo
[Momento em que o poeta lamenta as injustiças contra si e dá conselhos ao rei.] António Fonseca não se lamenta. A sua viagem tem sido bem encaminhada, talvez por ter ganho as boas graças de deuses pagãos que tudo ouvem e tudo vêem. Ou porque o poder das ninfas vai muito além da simples inspiração. Ou porque esta é a hora de se contar de novo a história de homens que se lançaram por «mares nunca dantes navegados», enfrentando «perigos e guerras esforçados,/ Mais do que prometia a força humana», mas que ainda assim «entre gente remota edificaram/ Novo Reino, que tanto sublimaram.»
Hoje, com este texto, António não faz a apologia de colonialismos desajustados, mas antes da coragem de avançar, apesar do medo. Por isso garante que, se não conseguisse apresentar o espectáculo numa sala de teatro, diria o texto no metro ou em qualquer outro lado. Para já são cinco cantos, metade do poema - 110 estrofes por cada canto, oito versos por cada estrofe, dez sílabas métricas em cada verso. Faça-se contas à vida e são cinco horas de aventuras: cada hora, um canto, cada canto, uma viagem.