A maléfica conspiração das formas de tratamento do português

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Nas conversas de café, quando vem à baila o inevitável debate sobre o estado da nação, corre à boca pequena que um dos problemas de Portugal é não sabermos trabalhar em equipa. Não pretendendo descobrir o ovo de Colombo, arrisco que talvez a dificuldade não resida tanto na formação da equipa em si, mas mais na comunicação entre os seus membros. Parece que quando se convencionaram as formas de tratamento na língua portuguesa, alguém com más intenções conspirou para tornar impossível qualquer tipo de simplicidade prática no trato. E depois deu nisto. Com tantos pró-formas e salamaleques, perde-se tempo e forças a pensar como deverá tratar-se a pessoa que está ante nós, ao invés de nos debruçarmos em conjunto sobre os problemas.

O próprio conceito de formas de tratamento constitui uma antítese daquilo que será o trabalho em equipa, que pressupõe uma certa igualdade entre os membros. Ora, essa igualdade é sabotada a partir do momento em que nos perdemos entre os «senhor doutor», «senhora engenheira», «senhor», «senhora dona», «dona» e o diabo a quatro. Tudo partindo do princípio que cada um sabe as regras implícitas. Caso não saiba ou caso esteja mais concentrado em executar tarefas do que em afagar egos, existirá sempre alguém que irá prontamente esclarecê-lo. Lamento pois dizê-lo, mas perante a análise empírica dos factos, não me resta senão concluir que podemos bater o punho quanto quisermos, enquanto não batermos o punho a esta pronominal confusão, continuaremos na nossa sociopatia muito pouco funcional.

Sociopatia, sim, que, nos dias que correm, a multiplicidade de formas de tratamento em que se desdobra a língua portuguesa não é nem sinal de riqueza de relações entre as pessoas nem sinal de riqueza linguística. É sinal de que algo vai tão mal entre nós que temos de erigir muros e barreiras disfarçados de pronomes e títulos académicos. De um lado, o condomínio fechado dos senhores doutores, do outro, o gueto dos senhores só, ponto final. Porque é que não podemos ser simplesmente «Ana», «Maria», «João»? Por que carga de água temos de ter algo antes de sermos algo? Ao darmos desmedida importância e destaque ao que importa pouco, vemos depois os figurões tristes dos que, para saírem do que sentem ser a pobreza franciscana do senhor só, arranjam cursos da Farinha Amparo para que possam ser doutores da mula ruça.

Mas a confusão não diminui quando passamos para a informalidade. O proverbial «você» anda à solta como se não houvesse amanhã. A confusão no seu uso já nasceu com o próprio. Derivado de um reverencial «Vossa Mercê», veio substituir um mal-amado «Vós» e a redundar naquilo que ouvimos hoje. Não é de espantar, por isso, que muitos pensem que chamar alguém de «você» é coisa boa. Por mim, podia perfeitamente ceder o seu lugar ao «tu» ou ao nome próprio. Não é que eu tenha alguma coisa contra as formas de tratamento do português. O que me incomoda é quando algo tão natural como a língua se torna uma coisa que concorre para a separação, ao invés de concorrer para a comunicação.

Não deixa de ser interessante e algo esquizofrénico que, numa sociedade que parece querer esmiuçar e diferenciar tanto os seus interlocutores, uma boa parte deles não conheça com clareza as regras para o uso correcto das formas de tratamento. Também, são tantas e tão complicadas, que ninguém poderá criticá-los. Se mesmo diferentes somos todos iguais, então há qualquer coisa aqui que não bate certo. Das duas uma, ou mentimos com quantos dentes temos na boca ou andamos a enganar-nos a nós próprios. A bem da nação, simplifique-se pois o trato e trate-se de encontrar o substrato.

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