'Raptadas': Na teia da inocência e da culpa
Título: Raptadas
Realização: Dennis Villeneuve
Com: Hugh Jackman, Paul Dano, Jake Gyllenhall e Terrence Howard
Classificação: 3 / 5
Que um filme nos faça pensar em O Silêncio dos Inocentes (1991), de Jonathan Demme, eis uma coisa rara... Refiro-me ao subtil Raptadas (título original: Prisoners), dirigido pelo canadiano Denis Villeneuve, e à sua perturbante teia de relações humanas e ambivalências morais. Não se trata, entenda-se, de celebrar uma banal hierarquia de valores, discutindo a maior ou menor distância que separa o trabalho dos dois cineastas. Digamos apenas que, aos 46 anos, Villeneuve merece ser reconhecido como um digno herdeiro das interrogações éticas e também das nuances dramáticas que distinguem a obra de Demme (aguardamos, entretanto, a estreia entre nós do mais recente título de Villeneuve, Enemy, baseado no romance O Homem Duplicado, de José Saramago).
Nenhum filme se "explica" através das peripécias da sua "história". O caso de Raptadas é tanto mais sintomático quanto o seu elaborado argumento, assinado por Aaron Guzikowski, parece começar por satisfazer-se com a mecânica tradicional de um rotineiro suspense: duas meninas são raptadas, a comunidade em que vivem fica fortemente abalada, a polícia inicia uma investigação, enfim, surge um suspeito que é preso e interrogado... Há, aqui, como é óbvio, um enigma policial a funcionar, suscitando a clássica equação "quem-como-onde". Em O Silêncio dos Inocentes, uma estrutura semelhante começava a derivar para o diálogo entre a investigadora do FBI, Clarice (Jodie Foster), e o cérebro criminoso, Hannibal (Anthony Hopkins), que está na prisão - dir-se-ia que aquilo que se apresentava como um crime por decifrar se transfigurava na metódica revelação da omnipresença do Mal.
Algo de semelhante acontece em Raptadas, a partir do momento em que o pai de uma das meninas (Hugh Jack-man) decide começar a agir à margem do líder da investigação policial (Jake Gyllenhaal), com a cumplicidade relutante do outro pai (Terrence Howard); o seu alvo é o alegado autor do rapto (Paul Dano) que, em qualquer caso, parece poder revelar algumas informações cruciais. A pouco e pouco, Raptadas deixa de ser uma narrativa determinista para passar a funcionar como uma teia de gestos em que a suposta normalidade do quotidiano se vai desagregando, expondo os fantasmas que contaminam (a partir do interior) aquilo que parecia um universo social imune a qualquer assombramento. Sinal dos tempos, sem dúvida.
Na sua definição mais geral, o policial clássico encena a crise da ordem e a reposição da lei. Raptadas não será um filme estranho a tal lógica, mas cumpre-a através de uma rede de peripécias que, no limite, nos confronta com as ambiguidades do nosso património civilizacional. Em última instância, reaparece aqui a herança de um mestre clássico como Alfred Hitchcock: qualquer processo de atribuição de culpa não pode deixar de se confrontar com o relativismo da noção de inocência.