20 outubro 2008 às 00h00

Quando Salazar achava a democracia "insuperável"

LÍLIA BERNARDES, Funchal

Documento. Quando era professor na Universidade de Coimbra, António de Oliveira Salazar foi processado por fazer política na sala de aula, acusado de fazer campanha em favor da monarquia. No documento que entregou em sua defesa, Salazar elogia a liberdade de expressão e a democracia

Ditador invocou democracia e liberdade

Em 1919, Salazar é um dos quatro professores de Direito suspensos pela Universidade de Coimbra, acusados por colaborar no movimento monárquico e de transformar as aulas em comícios.

O DN teve acesso à defesa de António de Oliveira Salazar, intitulado "A minha resposta". Neste processo de sindicância à Universidade de Coimbra, Salazar defende-se das acusações alegando que tem direito à liberdade de expressão.

"Eu creio fazer um serviço aos meus alunos, ensinando-os a conhecer Portugal. Que liberdade de opinião - não é anarquia - reina nas aulas, Santo Deus! Termino em geral as minhas prelecções por uma frase quase sacramental É esta a minha opinião", afirma.

Acusado de fazer conferências de propaganda católica e monárquica, que o acusador conhece desde os tempos de Viseu, Salazar afirma que chegou a Coimbra em Outubro de 1910, recém proclamada a República, garantindo que "nunca mais voltou a Viseu até ao 5º ano de Direito", em 1914, tinha então 25 anos.

"Neste ano fui fazer lá uma conferência sobre "A Democracia e a Igreja". Céus! Aqui está talvez o grande crime.", ironiza.

Ao tempo, escreve, "impressionava-me muito a forma anti-religiosa, propriamente, anti-católica, da realização democrática do mundo latino, contra aquela liberdade tão larga, tão magnânima, tão elevada da Inglaterra, da Bélgica, dos Estados Unidos da América. (...) Basta dizer que (a sua conferência) se apoiava em três ideias fundamentais: a importância secundária das formas de governo; a democracia como um facto histórico, uma corrente insuperável, uma conquista legítima, perfeitamente conciliável com o catolicismo; a necessidade de influir sobre a democracia nos termos em que o programa apresentado pelo próprio Toqueville: instrui-la, regular-lhe os movimentos e adaptar o seu governo às épocas e aos lugares".

Mas isso foi "em 1914. Era ainda estudante. Desde então, pode dizer-se que nunca mais falei em público", reiterou.

Neste documento, assume-se como um "soldado raso" do movimento católico e queixa -se de que a sua vida particular e pública foi analisada e "bem esquadrinhados todos os meus actos», apurando-se "esta coisa tremenda - fui, aqui há vinte anos colega num Seminário duma testemunha de acusação! (Rodrigues da Costa, aluno de Direito)". Mesmo assim, acha bem que o juiz tivesse dado "a máxima liberdade aos acusadores" porque, assim, "ficou com um conjunto de depoimentos que são um índice precioso duma época e duma mentalidade". Dá explicações "para que bem se possa inteirar da mesquinhez desta campanha contra a Universidade de Coimbra em que as graves acusações são desta ordem; actos contra a República num tempo em que a República... não existia".

"Havia monarquia: éramos todos monárquicos"

Defesa. Salazar não fala do seminário, por ser das coisas "inolvidáveis e sagradas"

A acusação de Rodrigues da Costa contra Salazar diz que em Coimbra todos sabem que Salazar é monárquico, que assistiu a conferências suas de propaganda católica e monárquica, e que conhece as suas ideias desde os tempos do Seminário e do Liceu de Viseu.

Salazar confirma a passagem pelo Liceu mas escuda-se a falar do seminário: "Do seminário nada digo. Há pessoas que desconhecem que pode haver na alma dos outros coisas inolvidáveis e sagradas que a gente esconde cuidadosamente das vistas dos tolos e dos maus, porque não podem compreendê-las nem são capazes de senti-las". "Reinava então em Portugal o senhor D. Manuel. Havia monarquia: éramos todos monárquicos, inclusivamente os republicanos. Mas não era de monarquia que se tratava, era de educação".

Em Abril de 1919, Portugal vivia mais uma de muitas convulsões de que a I República (1910-1926) foi fértil. A ditadura de Sidónio Pais chegara ao fim com o seu assassinato em plena estação do Rossio em Dezembro de 1918, e o País mais uma vez mergulhava numa grave crise política. Já antes da morte de Sidónio Pais, as forças monárquicas movimentavam-se com alguma visibilidade sobretudo no Norte através das Juntas militares de composição tendencialmente monárquicas e constituídas sob o pretexto de apoiar o Presidente e defender o País da subversão.

É através destas Juntas que em Janeiro de 1919 se institui a "Monarquia do Norte", pois em Lisboa a tentativa de retorno à Monarquia foi logo derrotada. O governo de Sidónio Pais, face à instabilidade política, as greves, as acções de rua, e plenamente consciente da situação no Norte revogou as alterações à Constituição e fez eleger o seu decano, o ministro Almirante Canto e Castro, para Presidente da República.

A Monarquia do Norte, apesar de durar só um mês, foi muito dinâmica em termos de produção legislativa e chegou a nomear governadores civis. Na reviravolta, deu-se uma perseguição aos seus potenciais defensores, tendo-se desencadeado ataques às universidades onde os movimentos conservadores tinham ganho palco. Em Coimbra, é nomeado um reitor da confiança do governo, Joaquim José Coelho de Carvalho, que processo Salazar.