A permanente actualidade da obra de Anthony Braxton

Julgo que não será imprudente afirmar, pelo menos em função dos concertos a que pude assistir, que a edição deste ano do Jazz em Agosto terá sido mais diversa no plano estético e, por isso, menos marcada pelos estafados clichés ditos de "vanguarda", que tanto continuam a deslumbrar e a fazer carreira.

A esta benesse inestimável, assim conceptualmente pretendida ou meramente ocasional, veio somar-se a prova provada de que há um imenso abismo entre a genuinidade e a contrafacção; e de que os arremedos e imitações mais ou menos indigentes nunca conseguem suplantar, no plano teórico e prático, a estatura e a seriedade através das quais o saber se explana em palco, com a tranquilidade e convicção dos que não precisam de constantemente berrar para se fazer ouvir.

Vem isto a propósito da intensa cumplicidade e partilha de sortes (sem claro destino à vista) que, de forma incessante, terá suscitado - tanto nos músicos envolvidos como, idealmente, nos espectadores - o notabilíssimo concerto de Anthony Braxton na última noite do festival. Aventuras que irrompiam em regra (é curioso) de periódicas e fragmentadas situações de férrea disciplina, concentração e quase-matemática precisão, sempre laboriosamente tratadas como peças de um puzzle mais amplo: uma decisiva, embora maleável, estratégia de criação.

É, aliás, muito interessante e significativo que tenha sido precisamente Braxton - um dos grandes e originais fundadores dessa vanguarda já histórica - a recordar, de novo, aos mais distraídos a importância da composição como motor de propulsão e dispositivo regulador e inspirador das dinâmicas da improvisação livre, entendida esta não como valor e padrão absolutos mas com o peso necessário e ajustado à inabalável consistência e estruturação da obra escutada.

Diferentemente do que aconteceu com outras actuações neste festival, julgo importante sublinhar que não foi de forma alguma qualquer ideia de "composição em progresso" que esteve presente no concerto de Braxton e seus pares mas muito mais a "decisão em tempo real" de como distribuir e até justapor (via diferentes subgrupos instrumentais) fragmentos e/ou sequências de duração variável da composição preestabelecida. Uma estratégia há muito conhecida do campo da música erudita e que Anthony Braxton, de forma criativa e muito sui generis, sempre gostou de invocar para o mundo do jazz e da música improvisada de expressão jazzística, consubstanciada através da sinalética da direcção gestual atribuída não apenas ao compositor mas deixada até ao criativo arbítrio dos próprios músicos.

Sendo certo que uma obra assim jamais poderá ser repetível de forma inteiramente idêntica e para que um tal poder decisório conduza a resultados artísticos que superem o risco e a contingência do método é primordial que os vários protagonistas estejam identificados não só com a obra, e seu compositor, mas ainda com os desvios por este desejados e estimulados, assim sendo capazes de interiorizar a importância desta complexa, fascinante e dialéctica relação de causa e efeito.

Neste sentido, deixando de lado a notória fragilidade de Jessica Pavone (violino) e a relativa decepção que me provocou um músico da estatura de Jay Rozen (tuba), é com um forte aplauso que destaco as actuações de Aaron Siegel (bateria e percussão), Taylor Ho Bynum (trompete, fliscorne, corneta e trombone) e, em particular, as viragens de rumo, vigor e expressão tímbrica suscitadas em momentos-chave por um impressionante Chris Dahlgren (contrabaixo), consideradas as várias vertentes da participação de todos: instrumental, solística e de direcção partilhada. Quanto a Anthony Braxton, mais do que para o instrumentista e o solista - e sem esquecer o momento único e lancinante de um solo absoluto, gritado no sax-alto - a vénia tem de ir, sobretudo, para a permanente actualidade de um criador maior do jazz contemporâneo.

Da maior justiça é, ainda, uma última palavra para referir a qualidade e sensatez dos critérios de transparência e equilíbrio sonoro do trabalho de João Paulo Nogueira, sendo justo referir que não lhe pertenceu (mas sim a um engenheiro de som integrado na equipa da Orkestrova) a desastrada captação do concerto inaugural do festival: Electric Ascension.

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