Covid-19
23 abril 2024 às 10h59
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Pais relatam agravamento geral do bem-estar dos filhos na pandemia

Um estudo da OMS cinclui que a perceção de tristeza e solidão nas crianças foi mais frequente no período pandémico. Em contrapartida, registou-se uma melhoria de vários comportamentos familiares, como a "partilha das refeições em família".

A maioria das famílias de 17 países europeus inquiridas num estudo percecionou um agravamento geral do bem-estar dos seus filhos durante a pandemia de covid-19, com a tristeza e a solidão a afetar uma em cada cinco crianças.

O estudo "O impacto da pandemia de covid-19 na rotina diária e nos comportamentos das crianças em idade escolar na Europa: resultados de 17 Estados-Membros", apresentado esta terça-feira em Lisboa, foi desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e coordenado cientificamente pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA).

Em declarações à agência Lusa, a investigadora do INSA que liderou a investigação, Ana Rito, realçou o facto de o estudo ter avaliado pela primeira vez variáveis sobre o bem-estar psicossocial das crianças.

"São dados únicos que não temos disponíveis nestas idades em outro estudo desta magnitude, com 54.000 crianças [e famílias], em questões relacionadas com o bem-estar, com a saúde mental e com e estado psicossocial destas crianças", sublinhou.

Em média, segundo a perceção dos pais, a "capacidade das suas crianças se divertirem com os amigos" piorou em 42% dos casos, nomeadamente na capacidade da criança poder "desfrutar de atividades no tempo livre" (27%) ou de "ter tempo suficiente para si própria" (19%).

A perceção dos pais de tristeza e solidão nas suas crianças foi mais frequente no período pandémico para uma em cada cinco crianças (20% e 24%, respetivamente) e uma em cada quatro crianças foi também percecionada pelos pais como sentindo-se menos bem e em forma.

Perante estes resultados, Ana Rito defendeu ser necessário fazer uma "reflexão conjunta" sobre os impactos desta vivência em crianças que tinham entre 6 e 10 anos e que hoje são adolescentes.

"Foi um impacto bastante grande nos comportamentos psicossociais destas crianças" numa altura muito importante das suas vidas em que "aprendem a socializar com os amigos e com os colegas e com os professores" na escola.

O trabalho agora divulgado pelo INSA analisou também as condições familiares em comparação com o período pré-pandemia, tendo verificado uma diminuição dos pais que reportaram estar empregados a tempo inteiro ou a tempo parcial durante a pandemia, sendo mais evidente nos pais (70-62%) do que nas mães (52-44%%).

Segundo o estudo, as dificuldades financeiras das famílias europeias aumentaram durante a pandemia.

Entre 2020 e 2022, 22% das crianças, 30% das mães e 26% dos pais testaram positivo para a covid-19 nos países estudados, uma prevalência que em Portugal atingiu os 55,3% nas crianças.

Para Ana Rito, a publicação deste relatório acontece "num momento muito oportuno", apesar de já terem passado quatro anos desde o início da pandemia.

"Estes dados permitem-nos fazer uma reflexão conjunta daquilo que vai ser a abordagem da obesidade infantil e, portanto, eu acho que é muito importante podermos verificar o que é que aconteceu em Portugal, mas, ao mesmo tempo, termos um termo de comparação com os outros 16 países que participaram neste relatório", adiantou.

No seu entender, é muito importante perceber como as medidas governamentais que foram transversais a toda a Europa, principalmente confinamento, resultaram em mudanças de hábitos.

A primeira reflexão vai ser realizada esta terça-feira na sessão pública de apresentação do relatório europeu COSI/Covid, coordenado cientificamente pelo Centro Colaborativo da OMS para a Nutrição e Obesidade Infantil do INSA, que reunirá peritos nacionais e internacionais.

Ana Rito adiantou que os peritos vão refletir sobre os dados do relatório, mas também debater "as ferramentas, os mecanismos" para dar resposta a questões como o excesso de peso, que em Portugal atinge mais de 30% das crianças, e a obesidade infantil.

"A intervenção política, económica, social tem sido feita de uma forma contínua nestes últimos 10, 15 anos com algum compromisso político", admitiu.

No entanto, defendeu maior compromisso político e mais responsabilização para as famílias, para a escola e para todos aqueles que estão ligados à saúde infantil, defendeu, lembrando que o excesso de peso é a doença mais prevalente na infância e "traz inúmeros riscos de comorbidades no futuro".

Apesar de Portugal ter tido "uma trajetória de alguma forma feliz entre 2008 e 2019", com uma tendência invertida na prevalência de excesso de peso e obesidade infantil, a situação foi revertida em 2022.

"Não sabemos se a única causa foi a vivência com a covid-19", disse, avançando que as autoridades terão de avaliar novamente as crianças em 2024/2025 e travar agora o problema da obesidade.

Um em cada cinco pais inquiridos neste estudo relatou que os filhos começaram a consumir mais 'snacks' salgados e doces durante a pandemia, apesar de terem comido com maior frequência fruta (10,3%), hortícolas (7%) e laticínios (10,8%).

O estudo da Organização Mundial da Saúde reuniu dados de quase 55 mil famílias e crianças, sendo a maioria rapazes (51,8%) e crianças de oito anos (54,8%).

Coordenado pelo Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), o estudo pretendeu conhecer e compreender o impacto da pandemia covid-19 (2020-2022) com base na perceção dos pais em relação a seis dimensões: Consumo alimentar, comportamentos familiares, atividade física e comportamentos sedentários, características do ambiente familiar, estado nutricional infantil, saúde mental e bem-estar.

O estudo revela que o consumo alimentar se manteve inalterado para 70 a 80% das crianças, mas a perceção dos pais sobre o estado nutricional dos filhos duplicou para o excesso de peso (passando de 8% antes da pandemia para 16% no período pandémico) e baixou de 82 para 73% a percentagem de crianças percecionadas como tendo peso normal.

Em declarações à agência Lusa, Ana Rito, investigadora do INSA que liderou o estudo, apontou como aspeto positivo da pandemia ter havido uma melhoria de vários comportamentos familiares, como a "partilha das refeições em família" (29%), "preparar refeições em conjunto com a criança" (30%) e "compra de alimentos em grandes quantidades" (28%), em vez da ida ao supermercado.

"Embora nunca associemos aspetos positivos à pandemia, houve, de facto, um ou dois aspetos que temos que realçar e um deles foi o maior tempo passado com a família (...) que permitiu que a criança estivesse mais perto da mãe e do pai na hora de cozinhar", recuperando algo que se tem vindo a perder no estilo de vida atual, comentou.

Houve, contudo, "muitos outros" aspetos que "não foram mudanças tão positivas na altura", disse Ana Rito, exemplificando que, se por um lado se observou um aumento no consumo de frutos e vegetais em Portugal, muito semelhante à média europeia, e um decréscimo no consumo de refrigerantes e de produtos açucarados, verificou-se, por outro lado, que "as crianças consumiram muito mais produtos açucarados de outra natureza, como as bolachas, os bolos", e 'snacks' salgados".

Também aumentaram "em larga escala" as atividades sedentárias, verificando-se um decréscimo do tempo que as crianças passaram a brincar ativamente nos dias de semana (28%) e no fim de semana (23%) e 36% aumentaram o tempo gasto a ver televisão, a jogar videojogos ou nas redes sociais.

Mais de um terço das crianças em idades escolar (34%), entre os seis e os dez anos, aumentou o tempo consumido na aprendizagem em casa, incluindo a "telescola", em mais de três horas diárias, tendo os pais reportado também um aumento do número de horas de sono das crianças nos dias de semana (15%) e fim de semana (17%).

"O aumento significativo destas atividades sedentárias, combinado com não haver oportunidade para as crianças poderem praticar atividade física [devido ao confinamento] (...) foi algo que certamente terá tido um impacto no estado nutricional e na saúde destas crianças", assim como "o maior consumo de produtos açucarados e produtos desinteressantes ao nível alimentar", salientou Ana Rito.

Ressalvando que a pandemia não terá sido "a única causa" para o aumento ligeiro do excesso de peso e obesidade que se verificou em Portugal, a investigadora afirmou que foi "um período bastante difícil para estas crianças e para todos" também em questões relacionadas com o bem-estar, a saúde mental e o estado psicossocial.