É de um dos nossos que falamos quando evocamos o centenário de nascimento de Sam, cartoonista de referência no último quartel do século XX, já que foi nas páginas do DN que, durante anos, “viveram” criaturas de papel por si geradas, como o Guarda Ricardo ou a melancólica Heloísa. Mas o seu sentido de humor fino, ancorado numa percepção satírica e muito atenta da atualidade nacional, tanto antes como depois do 25 de Abril, passou ainda por jornais como Notícias da Amadora (onde tudo começou por volta de 1968), Expresso, A Capital, Jornal Novo e Público, para além de vários livros, programas de rádio e de um conjunto de filmes (os filmezinhos do Sam) desenvolvidos em parceria com o ator Mário Viegas, em 1986.
Nascido em Lisboa a 31 de Janeiro de 1924, filho de pai português e mãe italiana, Samuel Azavey Torres de Carvalho começou, como nos diz a filha mais nova, Cristina Ruiz, por fazer o percurso profissional que a família tradicional esperava dele: Estudou Engenharia Civil e Arquitectura em Lausanne, na Suiça, dedicou-se profissionalmente ao Design Industrial e só ultrapassados os 40 anos começou a publicar desenhos e cartoons seus na imprensa periódica. Assim foi até ao fim da vida, com uma intensidade que gerou um espólio gigantesco. Afinal, como lembra a filha Cristina, uma vez devotado à disciplina da sua paixão, “passou a aproveitar todos os minutos para trabalhar”.
Para António Valdemar, antigo jornalista do DN e amigo pessoal do artista, o sucesso deve-se ao facto de ele “ter introduzido um grafismo muito próprio que se distingue à primeira vista de todos os grandes cartoonistas seus contemporâneos, como por exemplo Vasco ou João Abel Manta. Para além do traço que escolheu, a força da comunicação de Sam residia nas legendas diretas e explosivas.” Uma característica que lhe causaria (e aos jornais em que colaborava) muitos problemas com a comissão de censura. No livro O que a Censura Cortou, o jornalista José Pedro Castanheira refere vários casos acontecidos no Expresso em plena primavera marcelista: Como o que aconteceu na edição de 7 de Fevereiro de 1973, em que Sam, por prudência, apresentou sete desenhos diferentes, mas todos foram recusados pelos censores.
Nesse mesmo ano, estes e outros trabalhos seriam reunidos no livro De noite todos os viriatos são pardos (edição Estampa), título que remete para a Operação militar de nome Viriato, realizada em Angola no princípio da guerra Colonial. Em foco no livro, estavam temas sensíveis para o regime como o conflito em África, sem fim ou solução política à vista, a persistência de injustiças sociais gritantes no país ou a emigração para França, ditada pela pobreza. Alguns dos cartoons censurados nos jornais viriam a ser reunidos um ano depois, noutro livro, já em Democracia: O álbum Contestasam.
Como recorda António Valdemar, um dos méritos do artista era a atenção à atualidade: “Estava sempre em cima dos acontecimentos. Conseguia ser tão acutilante como os versos de Alberto Pimenta, um dos génios satíricos da poesia portuguesa do século XX ou de Alexandre O’Neill, um dos poetas que mais estimo e que renovou a língua portuguesa enquanto fulminava os governantes e os próprios governados.”
Ao longo da sua carreira de cartoonista, que o historiador de arte José-Augusto França considerou responsável pela recuperação do humor após o ostracismo a que o género foi votado pelo Estado Novo, Sam criou personagens que fizeram história como o Guarda Ricardo (que reflectia sobre os problemas do país com uma candura e um desassombro irresistíveis) ou a solitária Heloísa, a que dedicou um álbum justamente intitulado Querida Heloísa. Uma obra de tom inesperadamente feminista em torno de uma mulher triste e desamada, presa um casamento com um tal de Frederico, que nunca vemos, e a quem ela persistentemente mendiga amor. No prefácio à obra, a psicóloga e política Maria Belo escreve: “Quantas Heloísas que se ignoram para que um Sam possa fazer esta flor. Quem nos inventa assim, ao ponto de cada um de nós não ser, para se parecer tanto com as outras? Quem dá a alguém o direito de o dizer e de nos fazer sorrir e chorar de nós próprias?”
Mas no leque de personagens criadas por Sam há ainda que incluir Margueritte (senhora nua muito grande que vivia com um cavalheiro muito baixinho), Bartolomeu, menino com curiosidades um pouco incómodas ou Ulisses, um pássaro que tinha a bizarria de se apaixonar por uma mulher.
O centenário de Sam será evocado a partir desta quarta-feira no Museu Bordalo Pinheiro (ele próprio considerado o pai fundador do cartoonismo português,) em Lisboa. Dada a extensão do trabalho do homenageado, a exposição Não Ria. O Humor é um assunto muito sério será dividida em duas partes. A primeira pode ser vista até 24 de março; a segunda, entre 26 de março e 19 de maio. Nessa segunda parte, os cerca de 40 cartoons expostos na primeira parte serão substituídos por outras quatro dezenas de desenhos originais. A explicação é simples: Ao longo da sua carreira, o autor fez cerca de 6 mil cartoons e não é possível apresentar tudo em simultâneo. Num primeiro painel, teremos cartoons ligados ao período pré e pós-25 de abril de 1974, que abordam temas como a manifestação de afetos em espaço público ou a nova lei do divórcio, o que, segundo a organização, “permite pôr a visão do leitor/visitante em perspetiva face à nossa vida atual.”
Segue-se uma secção mais ligada às questões sociais, que nos permite perceber também a atualidade da obra de Sam. Assim, veremos como alguns cartoons, hoje com mais de 40 anos, poderiam ter sido feitos em 2024, pois abordam questões como o problema da habitação, os transportes públicos em Lisboa ou até outros momentos críticos nos jornais portugueses, como o que, em Novembro de 1990, conduziu ao encerramento do vespertino "Diário de Lisboa", a poucos meses de completar 70 anos de atividade.
De destacar ainda dois painéis dedicados a duas personagens marcantes na obra do artista. Em primeiro lugar, o já referido Guarda Ricardo, que, entre 1971 e 1993, fez rir os leitores de muitos jornais. Mas também Margueritte, personagem de exuberantes seios que terá inspirado a escultura “Infância”, também da autoria de Sam”, colocada bem perto do Museu Bordalo Pinheiro, no Jardim do Campo Grande.