Incompatibilidade
05 março 2024 às 07h10
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Engenheiro da Câmara de Ovar trabalha em obra adjudicada pela autarquia

Ricardo Reis está em licença sem vencimento, a trabalhar para a Mário Ferreira Pinto e Filhos Lda, numa obra de 1,3 milhões adjudicada pela Câmara de Ovar. Caso foi denunciado ao Ministério Público.

Um engenheiro da Divisão de Obras da Câmara de Ovar, em licença sem vencimento, passou a trabalhar numa obra adjudicada pela autarquia num concurso público que foi contestado por um dos concorrentes. O caso pode, segundo três juristas contactadas pelo DN, configurar uma situação de incompatibilidade, podendo estar em causa uma infração disciplinar, mas também os crimes de peculato e corrupção passiva.

Ricardo Reis está, como o DN confirmou ligando diretamente para o empreiteiro, a trabalhar para a Mário Ferreira Pinto e Filhos Lda desde janeiro, essencialmente na obra de requalificação do edifício municipal da Rua do Seixal, em Ovar. Ora, essa empreitada foi adjudicada pela Câmara de Ovar a Mário Ferreira Pinto a 17 de janeiro de 2024, como consta do Portal Base, por 1.357.086,92 euros. O preço foi, segundo, fonte oficial da autarquia, o único critério tido em conta no concurso “na modalidade monofator”, como a Câmara tem feito em todos os procedimentos do mesmo tipo.

Poucos dias depois da adjudicação, o concurso foi impugnado por um dos concorrentes, mas a Câmara de Ovar contestou a ação, sem suspender o contrato com a Mário Ferreira Pinto e Filhos Lda. “Esta ação não tem efeito suspensivo, nem tal foi requerido pela autora”, justifica fonte oficial da Câmara.

Situação denunciada ao MP

A presença de Ricardo Reis na obra da Rua do Seixal e em pelo menos uma reunião na Câmara de Ovar, a 16 de fevereiro, em representação da Mário Ferreira Pinto e Filhos Lda, chamou a atenção e, ao que o DN apurou, levou já a uma denúncia anónima ao Ministério Público.

Confrontada com esta situação, o gabinete do presidente Domingos Silva não confirmou nem desmentiu a participação de Ricardo Reis numa reunião na Câmara, limitando-se a assegurar que o técnico, em licença sem vencimento desde 1 de janeiro, “não participou na elaboração do projeto de execução, nem na preparação e organização do procedimento de formação do contrato da empreitada de Reabilitação/Reestruturação do edifício da Rua do Seixal – Ovar”.

A Câmara começou por dizer que as razões invocadas por Ricardo Reis e aceites pela autarquia como fundamento da licença sem vencimento “são de natureza pessoal e profissional”, lembrando que essa licença “não afasta os direitos, deveres e garantias das partes, pelo que o trabalhador está obrigado a não exercer qualquer atividade que possa colidir com os deveres a que está vinculado perante o Município de Ovar” e frisando que “a atuação contrária importará a adoção das medidas adequadas à sua imediata cessação”.

Já depois de o DN confirmar que Ricardo Reis estava a trabalhar na obra da Rua do Seixal, a Câmara assegurou a este jornal que “tomou posição e adotou as medidas adequadas à notificação do trabalhador e da empresa para a respetiva cessação imediata” dessas funções. Isso foi feito num despacho no qual Domingos Silva faz uma advertência ao técnico para “se abster de intervir na preparação e ou execução de contratos públicos na área das obras municipais em que o Município de Ovar detenha a qualidade de entidade adjudicante, sob pena de sujeição a procedimento disciplinar e cessação da licença sem vencimento”.

Ao DN, a autarquia garante que “adotará todas as medidas que se mostrem adequadas ao cumprimento da legalidade, não tolerando situações de conflito de interesses ou impedimentos”, mas não abriu ainda qualquer procedimento disciplinar a Ricardo Reis. “Tal poderá vir a ocorrer, mediante a ponderação a efetuar, se a notificação para a cessação da situação de conflito de interesses e impedimento não se verificar, de imediato, nos termos do despacho e das notificações”, admite a mesma fonte.

Juristas alertam para incompatibilidades

Inês Barroso Sá, da RSN Advogados, admite que podem estar em causa infrações, simultaneamente penais e disciplinares, como crimes de peculato e de corrupção passiva, e chama a atenção para “o alarme social” que a situação pode causar.

Mas a própria atribuição da licença pode levantar dúvidas. Isabel Araújo Costa, especialista em direito laboral, nota que as licenças previstas na lei “não servem nem têm o propósito de o trabalhador poder ir desempenhar funções para outro empregador” e que “para um trabalhador com vínculo de emprego público poder desempenhar outras funções, designadamente privadas, tem de pedir autorização para esse efeito”. Nesse caso, o técnico teria de incluir no pedido de licença dados como o “local do exercício da função ou atividade a acumular”, coisa que, a julgar pela resposta da Câmara, parece não ter acontecido.

“A situação descrita revela um possível conflito de interesses por parte do funcionário e é evidente que a suspensão do contrato por via da licença sem vencimento não afasta e nem podia o regime de incompatibilidades e impedimentos previsto na lei sob pena de estar descoberto o caminho para todos os funcionários praticarem atos contrários aos interesses dos serviços ou com eles conflituantes”, comenta Madalena Caldeira, jurista da Gómez-Acebo & Pombo.

O DN tentou contactar a Mário Ferreira Pinto e Filhos Lda, sem sucesso, tendo ficado sem reposta a perguntas enviadas por escrito à empresa. Contactado pelo DN, Ricardo Reis não quis fazer qualquer comentário.