Habitação
06 março 2024 às 08h29
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Cova da Moura tem donos: “Não queremos tirar de lá ninguém. Só queremos ser compensados”

Com o 25 de Abril começaram a chegar aos terrenos de uma quinta, perto de Lisboa, famílias de retornados e africanos. O terreno é privado e a família proprietária nunca foi ressarcida pela ocupação. Os que lá vivem gostam da Cova da Moura e não querem mudar-se.

"A maior força de ocupação dos nossos terrenos na Cova da Moura foi em 1975, com a descolonização. Começaram a aparecer estas pessoas, sem terem para onde ir, e tiveram a garantia do Estado e da câmara [na altura de Oeiras e só mais tarde passou para a Amadora] que, se ocupassem aquele terreno, mais tarde estas entidades conversavam com os proprietários para resolver a situação”, começa por contar Pedro Canas Vigouroux, neto de Francisco Canas - o dono, à época, daquelas terras - e atual representante da família. “A partir daí foi o descalabro. A família esteve sempre, permanentemente, a chamar a atenção e a tentar parar a ocupação mas, na altura, foram ocupados três ou quatro milhões de hectares em todo o país. Portanto, não era pelos nossos 16 hectares que iam preocupar-se, ainda por cima com uma emergência social de portugueses que vinham das colónias sem nada”.

Pedro Canas , representante da família proprietária dos terrenos do bairro da Cova da Moura. .(PAULO SPRANGER/ GLOBAL IMAGENS )


E assim foi, era na altura Pedro Canas Vigoroux era uma criança de 11 anos. Foi o avô materno, Francisco, a ver centenas de pessoas a instalar-se nos seus terrenos e a construir barracas, que mais tarde deram lugar às atuais moradias e prédios em alvenaria. Primeiro vieram os portugueses, “retornados”, depois africanos, sobretudo oriundos de Cabo Verde, ainda hoje a maior comunidade imigrante residente na Cova da Moura. 


“Foi sobretudo gente que veio para trabalhar nas obras, pessoas de trabalho. Não tinham para onde ir e foram fazendo as suas casas. Da nossa parte, da nossa família, não é uma necessidade tirar de lá as pessoas. Não queremos tirar de lá ninguém, Só queremos ser compensados e ver o assunto resolvido”, acrescenta o filho de uma das proprietárias, a mãe, atualmente como 88 anos, e representante de toda a família. A tia, que era coproprietária, já faleceu e os primos tornaram-se herdeiros de uma terra que está... ocupada. “Passam-se quase 50 anos sobre tudo isto e continuamos sem a propriedade que é nossa. Se há dinheiro do Estado para muitas outras coisas, para despejar em bancos, companhias aéreas e empresas privadas de gente que as deixou em má situação, também há de haver, com certeza, dinheiro para nos compensar de tudo isto”.


Ainda por cima, mesmo sem ter acesso à propriedade, a família paga IMI sobre os terrenos. “Pagamos à volta de 3800 euros por ano”. E não são os únicos, o que torna a situação ainda mais bizarra. “Os moradores também pagam IMI porque, a dada altura, quando se começou a falar que o bairro ia sair dali, propuseram-lhes pagar - na altura contribuição autárquica - para provarem que já lá estavam há muito tempo, em caso de realojamento”. O edificado tem donos - os habitantes - o terreno tem outros proprietários - a família Canas. A autarquia, contactada pelo DN, demarca-se: “Pese embora o IMI ser um imposto municipal, o mesmo é cobrado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, pelo que desconhecemos quem paga ou não IMI”.


Pedro Canas prossegue: “Aqui há uns anos houve uma tentativa do Governo negociar connosco. A Câmara da Amadora pagaria uma parte e o Estado compensar-nos-ia em património, com outra parte. Nós aceitámos mas isso depois não foi avante”. O advogado da família, Vasco Calheiros Pedroso tem o mesmo entendimento dos clientes. “Uma solução mista era o melhor: a câmara devia assumir os seus compromissos e pagar um valor. E depois a restante compensação vir do Estado, através da entrega de património”. Pedro Canas adenda: “ Os terrenos passariam a ser camarários. De resto, quanto ao Estado, há tanto património e mal gerido que seria uma boa solução para todos. Nós é que não podemos continuar nesta situação, isto é escandaloso!”.

Manuel da Luz Maocha e Avelino Alves de Andrade.
(Leonardo Negrão / Global Imagens)

Moradores agarram-se à terra

“Quando vim para aqui ainda era uma zona de hortas. Já tinha amigos que tinham começado a fazer casas e eu também fiz a minha, na horta de um deles”, recorda Manuel da Luz Maocha, 70 anos, que chegou de Cabo Verde em dezembro de 1976. “Esse meu amigo tinha lá cebolas, alhos, batatas e disse-me: ‘Maocha, se quiseres fazer uma casita eu dou-te este bocado de terreno’”. O cabo-verdiano construiu logo uma casa em tijolo. “Naquele tempo vinha a GNR e obrigava as pessoas a fazer as casas alinhadas. Por isso, as casas na parte de baixo do bairro estão todas direitinhas”. Depois, instalou-se a confusão, com cada vez mais pessoas a chegarem à Cova da Moura. “Começou a vir a invasão do pessoal”, relata o septuagenário. “Ninguém sabia que isto tinha dono. Fiz parte da comissão de moradores e houve um senhor, mais tarde, que disse que o terreno pertencia a um tal Canas. E que esse Canas queria que a câmara desse um terreno noutro sítio, para legalizar isto aqui”. Tudo foi continuando igual. “No dia 6 de novembro de 2006 no cinema D. João V, na Damaia, tivemos uma reunião. Veio o secretário de estado e fez uma proposta de que o problema do bairro estaria resolvido até 2011. Mas nada foi feito até hoje”, lamenta o morador, que paga IMI pela sua casa. 


Certo é que quem ali mora gosta de lá viver. “Desde o princípio do bairro, quando comecei a vir para aqui, podíamos dormir na rua que ninguém fazia nada. Criei cinco filhos e tenho um vizinho que tem sete filhos; nunca se meteram em porcaria”. Ainda assim, não nega que na Cova da Moura existe criminalidade, sobretudo relacionada com o tráfico de droga. “Isso são jovens que não querem estudar. Os pais vão trabalhar, os miúdos saem da escola e metem-se na desbunda. Vão crescendo desgovernados”, avança o idoso. “Depois há a cena da droga e as pessoas que usam droga têm de fazer asneira”. Ainda assim, assevera: “Eu nunca tive medo”. E orgulha-se sobretudo das filhas. “A mais nova é advogada e a outra é doutorada na defesa dos Direitos Humanos. Dizem mal do bairro mas não é bem assim. O bairro foi construído por pessoas honestas e trabalhadoras. Em todos os cantos do mundo há bons e maus. Isto não é uma favela”.


Avelino Alves de Andrade, 77 anos, chegou à Cova da Moura em 1981. “Toda a gente fazia a sua casa e ninguém nos disse para não o fazer”. Também ele está feliz no bairro de construção clandestina. “Eu gosto disto aqui. Por exemplo, eu tenho um quintal. Se eu fosse para um apartamento como é que eu podia fazer um peixinho grelhado?” E relata um cenário semelhante ao observado pelo amigo Maocha, quando chegaram, naqueles tempos, a esta terra. “Isto era tudo horta e até havia uma vacaria. Na altura ninguém pagava para fazer a casa. Comprávamos os materiais e fazíamos tudo juntos, ajudávamos uns aos outros. Era só comer, viver e trabalhar”.

Também Avelino garante: “Não sabíamos que o terreno tinha dono. Quando soube disso já a minha casa tinha três andares. O convívio sempre foi bom e somos muito unidos.” Quanto ao crime, de que tantas vezes se fala, Avelino assume: “Uma vez estavam a fazer uma rusga lá em cima. Eu ando na minha linha e cada um resolve o seu problema. Não me meto na vida de ninguém”. E apoia a ação das forças policiais, quando necessário. “A lei é para ser cumprida. Se eles estão a transgredir... Há alguns que não têm trabalho e outros não querem procurar trabalho, depois metem-se no que não devem”.


Helena Sousa, 44 anos, já nasceu na Cova da Moura. “Os meus pais fizeram aqui a sua casita. E eu não quero sair daqui, noutro sítio ia perder os laços que tenho com os meus vizinhos”, aponta a mulher, cuidadora informal do filho deficiente motor. “Muita gente depois de vir cá diz que pensava que era outra coisa. Porque na televisão só dão notícias sobre a violência. Aqui há muito mais: há muita ajuda entre nós, às vezes até paramos para conversar com os idosos, ver se precisam de alguma coisa. Aqui ninguém passa mal”. 


Na Associação Moinho da Juventude, Jakilson Pereira, 39 anos, o presidente, observa: “Às vezes parece romântica essa ideia de a Cova da Moura ser a 11.ª ilha de Cabo Verde. Mas isso também serviu para nos colocar um rótulo e para a exclusão.” Ele próprio assegura que já se sentiu posto de parte por ser da Cova da Moura. “Se, ainda na minha geração, tentamos mudar a morada no currículo para poder encontrar emprego, o que é que lhe parece?”, conclui. 

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