Aborto
29 fevereiro 2024 às 23h54
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AD e Chega querem “dar as mãos” contra “a esquerda marxista assassina”

Ao contrário do que disse Montenegro, Paulo Núncio assumiu representar a AD ao prometer dificultar o direito ao aborto, defendendo “todas as pontes possíveis” para reverter o que denomina de “leis iníquas”. Pedro Frazão, do Chega, congratulou-se: “Temos de dar as mãos” contra a “esquerda marxista assassina”.

“À direita tenho o Paulo Núncio, representante da AD, pai de quatro filhos.”

Foi assim que o vice-presidente do CDS-PP e ex-secretário de Estado do governo Passos foi apresentado no encontro, ocorrido a 20 de fevereiro, no qual defendeu a realização de um novo referendo sobre o direito das mulheres a interromperem uma gravidez não desejada e, enquanto tal não for possível, medidas para “dificultar o acesso” ao aborto legal. De resto, o próprio não deixou qualquer dúvida sobre estar ali mandatado pela coligação: “A minha presença aqui em representação da AD é só por si um sinal de que a AD é uma força política que defende políticas pró-vida e pró-família.”

Este facto choca com o afirmado esta quarta-feira por Luís Montenegro, o líder da AD, que quando confrontado com as afirmações de Núncio as enquadrou como uma “expressão individual e apenas e só a comprometer e a vincular o doutor Paulo Núncio”, negando terminantemente que a coligação contasse entre os seus objetivos a reversão da chamada “lei do aborto”, a qual permite a interrupção de gravidez (IG) nas primeiras dez semanas por exclusiva vontade da mulher, tendo, como é sabido, resultado de um referendo realizado em 11 de fevereiro de 2007.

Na verdade, durante as quase duas horas da sessão organizada pela associação anti-escolha Federação Portuguesa pela Vida (e que está patente no Youtube), Paulo Núncio repetiu várias vezes “falo em nome da AD”, esforçando-se por convencer o moderador da conversa e a audiência de que não só o seu partido, o CDS-PP, “sempre esteve do lado certo da história” (entendido por si como o da oposição a várias leis que garantem direitos sexuais e reprodutivos e a liberdade de decisão individual, como a da interrupção da gravidez e a da eutanásia), como também o PSD. “O PSD é um partido diferente, não posso negar, não é democrata-cristão, embora na prática, sempre que se discutiram alterações à lei do aborto no sentido de flexibilizar o aborto e sempre que houve referendos do aborto, os líderes do PSD e a esmagadora maioria do PSD também estiveram do lado do Não.”

É nesse sentido, o de demonstrar o histórico de combate “pelo lado certo” do PSD e do CDS-PP, que surge a referência ao que a maioria absoluta destes dois partidos fez no último dia da legislatura 2011/2015, quando, recorde-se, Luís Montenegro era presidente da bancada parlamentar do PSD. 

Trata-se de medidas que Paulo Núncio assume terem tido o objetivo de “dificultar o acesso ao aborto”, gabando-se de o executivo de Passos Coelho ter sido “um dos primeiros governos do mundo” a agir nesse sentido: “É importante frisar que em 2015, não obstante já termos a lei do aborto em vigor, e depois do referendo, o governo do PSD e do CDS, na altura era a PAF, enfim era a AD mas tinha outro nome, foi dos primeiros governos do mundo a tomar medidas no sentido de dificultar o acesso ao aborto. Não foi possível reverter a lei, é verdade, mas foi tomado um conjunto de medidas que logo a seguir foram revogadas pelo PS”. 

Até ali, explica, “quem queria fazer um aborto não pagava taxas moderadoras porque, imagine-se, se considerava que o aborto se tratava de um cuidado de medicina materno-infantil e essa era a razão para a isenção das taxas. E foram introduzidas nessa altura, assim como a obrigatoriedade do aconselhamento psicológico e social como forma de uma maior consciencialização da mãe. E do pai também, porque também é um elemento relevante nesta matéria.” Outra medida que a maioria PSD/CDS-PP tomou na mesma altura, e que Núncio não referiu, foi a de anular a proibição, existente na lei desde 2007, de intervenção de médicos objetores de consciência nas primeiras consultas do processo de IG, que servem para informar as mulheres, e no seu aconselhamento (até ali apenas se requerido) durante o período “de reflexão” que a lei impõe entre a primeira consulta e o procedimento.

E é o mesmo tipo de ação que este representante da AD preconiza para a próxima legislatura: "Devemos ter a capacidade de tomar iniciativas no sentido de limitar o acesso ao aborto e logo que seja possível procurar convocar um novo referendo no sentido de inverter esta lei que é uma lei profundamente iníqua"

“Para ganhar esta luta não podemos invocar linhas vermelhas”

Mas não foi só o discurso de Paulo Núncio a chocar frontalmente com a reação posterior do líder da coligação que ali representava; também as alegações de Pedro Frazão, o outro convidado presente na sessão, deputado do Chega desde 2022 e cabeça de lista pelo partido por Santarém, contradizem o que foi dito depois pelo seu líder, André Ventura, que declarou estar ali a representar.

De facto, se Ventura esta quarta-feira asseverou não ter no seu horizonte voltar a criminalizar o aborto - cuja despenalização chegou até a defender em 2020, numa entrevista ao Público, como recordou Núncio -, Frazão respondeu à primeira pergunta que lhe foi feita pelo moderador sobre se as forças políticas ali presentes seriam capazes de “construir pontes” nas matérias que estavam em causa (aborto, eutanásia, luta contra a discriminação de género, aulas de cidadania) com grande entusiasmo. “Fico muito feliz por estar aqui hoje em defesa da vida. Temos de dar as mãos e temos de reverter políticas iníquas que foram ganhas pela esquerda marxista assassina nas últimas décadas e não podemos ter medo das palavras porque de facto a esquerda marxista e assassina tem ganhado essa batalha cultural.” 

Repetindo a expressão “esquerda assassina” cinco vezes seguidas sem que nenhum dos presentes reagisse, e mencionando especificamente o direito à interrupção da gravidez como uma das “políticas iníquas” a reverter, Frazão proclamou: “Para ganhar esta luta não podemos invocar linhas vermelhas, o Chega nunca invoca linhas vermelhas na direita. Temos de remar para o mesmo lado para combater as leis iníquas da esquerda.”

Algo semelhante, embora em linguagem menos aguerrida, dissera Paulo Núncio em resposta à mesma pergunta: “Acho que é possível, em nome de um conjunto de valores fundamentais, fazer pontes. A esquerda tem dado passos para atacar a vida e a família e é importante que sejam feitas todas as pontes possíveis no sentido de reverter as medidas introduzidas nos últimos tempos.”

As respostas agradaram ao moderador, que resumiu assim, sem ser contraditado, a conclusão retirada: “Fico contente que estejam dispostos a unir esforços por esta causa.” Ainda assim, voltaria à carga no final da conversa, pedindo certezas a Paulo Núncio: “Temos a garantia de que nas questões estruturais - eutanásia, aborto, liberdade na educação - a AD, o voto na AD, será a favor da vida contra estas manobras, estas engenharias sociais?”

O representante da coligação liderada por Luís Montenegro remeteu para o acordo da mesma: “O que posso garantir de forma inteiramente clara são os princípios e valores que estão incluídos no acordo de coligação, e onde estão identificados quatro temas absolutamente decisivos. Em primeiro lugar, colocar a dignidade da pessoa humana no centro e como prioridade da ação política; em segundo lugar, valorizar a família como célula fundamental da vida em sociedade; em terceiro lugar, apostar em políticas de natalidade que invertam o inverno demográfico; e em quarto lugar, apostar na liberdade e exigência na educação, contra a doutrinação dos nossos jovens e crianças.” E, repetiu, “é preciso ter em atenção a história dos partidos”.

Note-se que também o líder do CDS-PP veio a público esta quinta-feira contradizer Núncio, certificando, em declarações ao DN (e apesar de reconhecer “a posição do CDS é a de sempre, o CDS não mudou”) que “este tema [o do aborto] não consta do acordo de coligação. Não é um tema da próxima legislatura”.

Mas o “acordo de coligação” voltaria, no encontro de dia 20, a ser invocado por Núncio quando, no período final de perguntas do público, foi confrontado com o facto de o programa da AD (como de resto, assinale-se, se passava com o programa eleitoral da coligação PSD/CDS-PP para as legislativas de 2011, o que não a impediu de alterar a lei do aborto) “falar zero vezes em aborto, eutanásia e ideologia de género”. O político centrista, quarto na lista por Lisboa nas eleições de 10 de março e que a dada altura confessou não perceber como fora sequer possível que o Sim ganhasse o referendo de 2007 - "Deus Nosso Senhor lá saberá por é que o Sim ganhou" -, pareceu até querer significar que não é o programa eleitoral que conta: “Houve um acordo de coligação entre os partidos e essas matérias estão vertidas no acordo de coligação.”