Relatório sobre direitos humanos
24 abril 2024 às 07h21
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Amnistia destaca violência de género e contra migrantes e habitação em Portugal

AI aponta o caso de sete polícias acusados de torturar imigrantes mas que foram autorizados a retomar funções, diz que em 2023 persistiram as preocupações quanto a baixas taxas de acusação de violência doméstica, e recorda dados que indicam que o número de famílias sem habitação adequada triplicou em relação a 2018.

Violência de género e contra imigrantes e falta de habitação adequada figuram entre as principais referências a Portugal no relatório anual da Amnistia Internacional (AI) sobre o estado dos direitos humanos no mundo, divulgado esta quarta-feira.

Referente a 2023, o documento analisa 155 países e conclui que, no ano passado, as violações dos direitos humanos "foram generalizadas".

Para Portugal, a AI aponta o caso de sete agentes policiais que foram acusados de torturar imigrantes e que foram autorizados a retomar funções, diz que no ano passado persistiram as preocupações quanto a baixas taxas de acusação de violência doméstica, e recorda dados que indicam que o número de famílias sem habitação adequada triplicou em relação a 2018.

Sobre a tortura e maus tratos o relatório cita o Comité para a Prevenção da Tortura, do Conselho da Europa, que disse que os maus-tratos infligidos aos detidos, por parte dos agentes de autoridade, são uma prática persistente, reiterando a obrigação do Governo de assegurar a investigação dos supostos casos e combater a impunidade.

Em junho, o Tribunal da Relação de Évora absolveu um agente da polícia militar e reduziu as penas de quatro outros agentes condenados por tortura de imigrantes na cidade de Odemira, distrito de Beja.

Após uma suspensão inicial das funções, os sete polícias envolvidos no caso receberam autorização para voltar ao trabalho.

"De acordo com um relatório do Provedor de Justiça publicado em abril, a taxa média de ocupação das prisões em dezembro de 2022 era de 100,8%, com 25 das 49 prisões sobrelotadas", diz-se no relatório.

Sobre a violência baseada no género, a AI cita o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas (CESCR) e a preocupação que manifesta pelo "elevado e persistente nível de violência doméstica" em Portugal, tendo aquele Comité exortado as autoridades a resolver o problema das baixas taxas de acusação dos suspeitos de violência doméstica, bem como a insuficiente oferta de abrigos para as vítimas que procuram segurança.

A Amnistia cita ainda dados oficiais sobre segurança interna (de março), que estimavam um aumento de 18,2% no número de pessoas sujeitas a tráfico de seres humanos, quase metade para exploração laboral.

E recorda dados do Instituto Nacional de Estatística de janeiro que estimavam que 9,2% das pessoas viviam em habitações sobrelotadas, afetando quase 20% das famílias em situação de pobreza. E que eram 86 mil as famílias com carências habitacionais no ano passado.

Em 2023, diz a AI no relatório, na parte sobre direitos económicos, sociais e culturais, França, Irlanda e Portugal registaram níveis recorde de sem-abrigo.

O movimento internacional fala ainda na parte sobre Portugal do caso de três ativistas que processaram a Câmara de Lisboa por alegada violação dos seus direitos, e o caso de seis jovens que apresentaram queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos contra 32 países, alegando que os governos não estavam a fazer o suficiente na luta contra as alterações climáticas. Já este ano o Tribunal pronunciou-se, não dando razão aos jovens.

Em termos mundiais, a AI traça um quadro muito mais sombrio, falando de ataques e assassinatos num número crescente de conflitos armados, repressões às liberdades de expressão, de associação e de reunião pacífica, e detenções arbitrárias.

Fala ainda de Estados que não tomaram medidas para garantir o direito das pessoas à alimentação, à saúde, à educação e a um ambiente saudável, negligenciando as injustiças económicas e a crise climática.

O tratamento de civis como dispensáveis em conflitos armados, a crescente reação contra a justiça de género, o impacto desproporcionado das crises económicas, das alterações climáticas e da degradação ambiental nas comunidades mais marginalizadas, e as ameaças de tecnologias novas e existentes representam na perspetiva da AI desafios críticos para os direitos humanos em todo o mundo em 2024 e nos anos seguintes.

Ano 2023 foi de solidariedade sem precedentes, apesar de violações dos direitos

A secretária-geral da organização Amnistia Internacional, Agnès Callamard, elogiou  a "solidariedade sem precedentes" demonstrada em todo o mundo em 2023, apesar de ter sido um ano em que os direitos humanos sofreram regressões significativas.

"As regressões dos direitos humanos em 2023 não passaram despercebidas. Pelo contrário. Pessoas em todo o mundo resistiram à regressão, demonstrando uma solidariedade global sem precedentes", sublinhou a responsável da organização internacional de defesa dos direitos humanos.

O relatório anual da organização não-governamental (ONG) sobre o Estado dos Direitos Humanos no Mundo, hoje publicado, sublinha a mobilização "sem precedentes" de governos e pessoas pela defesa dos direitos humanos.

"Quando muitos governos não cumpriram o direito internacional, vimos outros a apelarem às instituições internacionais para implementarem o Estado de Direito. E onde os líderes de todo o mundo não conseguiram defender os direitos humanos, vimos pessoas galvanizadas a marchar, protestar e pedir um futuro mais esperançoso", afirmou Agnès Callamard, mencionando alguns exemplos verificados à escala mundial durante o ano passado.

"O conflito Israel-Hamas provocou centenas de protestos em todo o mundo" com "as pessoas a exigiram um cessar-fogo para acabar com o sofrimento dos palestinianos em Gaza, bem como a libertação de todos os reféns feitos pelo Hamas e outros grupos armados, muito antes de muitos governos o fazerem", referiu a Amnistia Internacional no relatório.

"O secretário-geral da ONU, os chefes das agências da ONU e as organizações humanitárias tomaram medidas sem precedentes para denunciar os crimes de guerra cometidos no sul de Israel e em Gaza e para apelar a Israel para que respeite o direito internacional", enalteceu a secretária-geral da organização, citada no documento.

A mobilização foi observada também em muitos outros locais, como nas ruas dos Estados Unidos, de El Salvador e da Polónia "para exigir o direito ao aborto, à medida que a reação contra a justiça de género se consolidava".

Por outro lado, relatou ainda a Amnistia Internacional, "milhares de pessoas aderiram ao movimento 'Fridays For Future', liderado por jovens, para apelar à eliminação justa e rápida dos combustíveis fósseis" e, em Taiwan, o movimento #MeToo conseguiu levar o Governo a aprovar uma alteração à Lei de Prevenção do Crime de Agressão Sexual.

No Afeganistão, o ativista Matiullah Wesa foi libertado em outubro, após meses de campanhas e de ter passado quase sete meses na prisão por promover o direito das meninas à educação, e na Turquia, quatro defensores dos direitos humanos acusados de terrorismo foram absolvidos depois de muitas manifestações.

"O direito de protestar é fundamental para esclarecer os abusos e as responsabilidades dos líderes. As pessoas deixaram bem claro que querem direitos humanos", sublinhou Agnès Callamard.

"Dada a sombria situação global, são necessárias medidas urgentes para revitalizar e renovar as instituições internacionais destinadas a salvaguardar a humanidade", defendeu a responsável da Amnistia Internacional, apontando a necessidade de reformar o Conselho de Segurança da ONU, para que os membros permanentes não possam exercer o seu poder de veto sem controlo.

No ano passado, "muitas pessoas resistiram e perturbaram as forças que empurravam o mundo para trás", disse a representante, considerando que esses protestos "também moldaram o ano 2023, contra todas as probabilidades".

"Espero que em 2048 -- ou mesmo em 3048 --, quando diplomatas e ativistas olharem para o ano passado [2023], descubram que houve muitas, muitas pessoas boas em todo o mundo que fizeram tudo o que podiam, levantando-se e falando", concluiu Agnès Callamard.