Apoios sociais
24 janeiro 2024 às 18h48
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“Subsidiodependência” entrou para o léxico político. Mas existe mesmo?

Chega e PSD apontam a mira a quem está “subsidiodependente do Estado”. Economistas e sociólogos questionam o conceito. E os números ajudam a desconstruir essa ideia.

André Ventura, líder do Chega, tem feito da luta contra a “subsidiodependência” uma bandeira. Mas não está sozinho. Este domingo, Luís Montenegro trouxe o conceito para o discurso do PSD quando, na Convenção da AD, disse que “o projeto socialista nivela por baixo e quer efetivamente o máximo de portugueses a ficarem subsidiodependentes do Estado”. Mas o que é, afinal, a “subsidiodependência”?

“É um mito. Não corresponde aos dados”, responde Renato Carmo, professor de Sociologia do ISCTE. “Quando falamos de subsidiodependentes, estamos a falar de quem? De beneficiários do regime contributivo? Dos que recebem subsídio de desemprego porque trabalharam e descontaram? Ou estamos a pensar apenas no regime não-contributivo? Há uma confusão quando se usa esta noção, que é vaga e até conscientemente ambígua, porque ela serve propósitos políticos”, defende Frederico Cantante, investigador do CoLABOR.

Em muitos discursos políticos, desde os tempos em que Paulo Portas era líder do CDS, o RSI (Rendimento Social de Inserção) é apontado como exemplo de uma prestação que permite viver sem trabalhar, mas olhando para os números é difícil encontrar sustentação para confirmar essa ideia.

O que os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento indicam é que, em 2022, 17% da população residente em Portugal se encontrava em risco de pobreza, ou seja, vivia com menos de 591 euros por mês. No entanto, segundo a Pordata, em 2022 só 2,9% dos portugueses recebia RSI. De resto, esta é uma percentagem que tem vindo a baixar: a média, entre 1998 e 2017, era de 3,8% de portugueses a receberem o RSI.

Na verdade, é possível trabalhar e ser pobre. Em 2022, 10% das pessoas em risco pobreza (antes de transferências sociais) estavam a trabalhar. E o Barómetro Europeu sobre Pobreza e Precariedade, divulgado em setembro de 2023, indica que um em cada dois trabalhadores portugueses afirma que o seu salário não chega para fazer face às suas despesas.

Trabalhar compensa?

Susana Peralta, economista da Universidade Nova SBE, diz que encontrou num documento do PSD sobre a reforma fiscal “uma questão que se pode associar a essa ideia de subsidiodependência, que é a de que o desenho das transferências sociais pode levar a um desincentivo ao trabalho”. Uma noção que Peralta admite poder fazer sentido, quando, por exemplo, as condições de recurso a certos apoios sociais fazem com que não compense aceitar trabalhos mal remunerados, que depois fazem perder esses mesmos apoios. “Essa é uma ideia séria e importante”, sublinha a economista, que refuta a noção de “subsidiodependência” como uma “ideia estigmatizante”.

Neste momento, a atribuição do RSI tem em conta, para a condição de recursos, 50% dos rendimentos do trabalho auferidos. “No fundo, isso é uma taxa de imposto altíssima”, critica Peralta, defendendo que se deve “desenhar a condição de recursos, por forma a que a penalização pelo trabalho seja menor”.

Ainda assim, Frederico Cantante não tem dúvidas: “Trabalhar compensa.” Porquê? Porque “o diferencial entre o salário mínimo nacional e o valor de referência para as prestações tendeu a agudizar-se”. Em 2023, o valor de referência do RSI era de 209,11 euros (mais 118,63 euros por cada menor dependente) e o salário mínimo está desde 1 de janeiro nos 820 euros.

Renato Carmo também não aceita a ideia de que quem recorre a apoios sociais não quer trabalhar, mas sim que a maioria não consegue trabalhar. “As pessoas que estão no subsídio de desemprego já trabalharam, já contribuíram e muitas vezes não conseguem regressar ao mercado de trabalho”, nota o sociólogo, frisando que os desempregados são cerca de 50% das pessoas em risco de pobreza.

Outra fatia importante dos mais pobres que precisam de apoios sociais são as crianças e jovens. De acordo com estatísticas de janeiro de 2023, os menores de 18 anos representavam 32,4% dos beneficiários do RSI. “Os que recebem prestações sociais, na sua maioria, ou trabalham, ou já trabalharam ou não têm idade para trabalhar”, vinca Renato Carmo.

Segundo um relatório do Ministério da Solidariedade e Segurança Social para assinalar os 20 anos de RSI, só 2,1% das pessoas que deixaram de receber este apoio perdeu direito a ele “por falta ou recusa de uma ação ou medida do Contrato de Inserção ou falta à convocatória do IEFP/SS”. Apenas 1,7% ficou sem RSI “por recusa de oferta de atividade socialmente útil/formação profissional/trabalho conveniente/trabalho socialmente necessário”. E só 0,4% deixou de receber RSI “por ter prestado falsas declarações”.

Na maioria dos casos, ou seja 24,1%, a cessação do apoio deu-se por “alteração de rendimentos e/ou composição do agregado familiar”. E há quem tenha começado a trabalhar já depois de passar a receber o RSI: segundo o mesmo relatório, era o caso de 7,9% dos beneficiários deste apoio em 2017. Susana Peralta nota que “há uma dinâmica que faz com que as pessoas entrem e saiam da pobreza - não se é pobre para sempre”.

Frederico Cantante explica que isso se nota na evolução do número de beneficiários do RSI, que “está relacionada com o ciclo económico”. Isto é, quando a economia cresce tende a diminuir o número de pessoas que recebem o RSI. Cantante diz que a exceção foi o Governo de Passos e Portas: “Isso não se verificou entre 2011 e 2013, porque as regras mudaram e dificultaram o acesso a esse apoio.” 

Dados revelados em março de 2023 mostram, aliás, que o número de beneficiários do RSI é o mais baixo dos últimos 17 anos.

O estudo A pobreza em Portugal: tendências e conjeturas mostra que, antes de qualquer transferência social, a taxa de risco de pobreza em 2022 era de 41,8%, ou seja, abrange quase metade da população. Ela só baixa para os 21,2% após as transferências relativas a pensões de reforma e sobrevivência e fica nos tais 17%, depois das restantes transferências sociais, que incluem subsídios por doença e incapacidade, família, desemprego e inclusão social, como o RSI.

O caso açoriano

Nos Açores, um dos pontos do acordo com o Chega, que permitiu à coligação PSD/CDS/PPM governar, foi o corte no RSI. O número de famílias açorianas que recebem esse apoio caiu quase 37% desde a entrada em funções desse Governo. No entanto, isso teve um resultado: a taxa de risco de pobreza sobe nos Açores desde 2021, tendo passado em 2022 de 25,1% para 26,1%, fazendo com que esta continue a ser a região mais pobre do país.

Isto, apesar de o vice-presidente do Governo Regional, Artur Lima, assegurar que “com o maior número de sempre de pessoas empregadas e com a economia a crescer consecutivamente, podemos concluir que estes antigos beneficiários do RSI reduziram a intensidade da sua pobreza e estão hoje a auferir rendimentos superiores ao montante da prestação que recebiam.”

E é olhando para números como estes que Frederico Cantante teme os efeitos de um discurso político cujo “subtexto é o emagrecimento do Estado Social”, quando em seu entender “o problema que temos é gastar de menos em apoios sociais e não demais”.

“Não há nenhum problema de subsidiodependência em Portugal”, garante Cantante, que encontra no uso dessa ideia uma “manipulação simbólica”, mais do que a tradução de um problema real. O problema, argumenta, é que “os alvos deste discurso são as categorias sociais mais frágeis”, mesmo que muitas vezes sejam também os mais desfavorecidos a incorporar a ideia de que há alguns que vivem de apoios do Estado, enquanto outros têm de trabalhar, graças a uma “competição entre os mais desfavorecidos” por via do “achatamento da metade inferior dos rendimentos”.

Ou seja, uma perda do poder de compra das classes trabalhadoras que se traduz em ressentimento contra quem beneficia de apoios sociais.

Alguns números

209,11. Valor: O valor de referência do RSI é de 209,11 euros. É esse o montante atribuído ao titular do apoio, a que podem acrescer 146,38 euros por cada maior de idade no agregado familiar e 104,56 euros por cada menor de idade.

313. Família: Uma família com um adulto e uma criança recebe 313,67 euros, apenas se não tiver mais nenhum rendimento. Isto, porque o RSI é a diferença entre os rendimentos do agregado e os 209,11 euros de referência.

41%. Risco: A taxa de portugueses em risco de pobreza é de 41,8% antes de qualquer prestação social. Depois de prestações (que incluem pensões de reforma e sobrevivência) o valor fica nos 17%.

18. Perfil: Mulher, com idade até aos 18 anos, residente no distrito do Porto. É este o perfil tipo do beneficiário do RSI, segundo um relatório do Ministério da Segurança Social. 32,4% dos que o recebem são menores.

2,9%. Beneficiários: Em 2022, segundo a Pordata, só 2,9% da população portuguesa recebia RSI. Mas há 10% de pessoas que trabalham e estão em risco de pobreza e 50% cujo salário não cobre as suas despesas.