“Xi Jinping é um líder transformador. Tem uma visão de onde quer levar a China”
A China, depois de Xi Jinping, mesmo sendo a China Comunista, a mesma República Popular da China, é um país diferente?
É um país radicalmente transformado, tanto em termos da sua política interna como da sua política externa, depois de Xi Jinping. Acho que Xi Jinping é um líder transformador. Ele tem uma visão de onde quer levar a China, tanto no país como no estrangeiro, e isso em muitos aspetos resultou numa espécie de transformação de 180 graus. Assim, na frente interna, por exemplo, Xi Jinping afastou o país do que tinha sido uma liderança coletiva, um processo de tomada de decisão coletiva, para um governo verdadeiramente de um homem só, onde concentrou uma quantidade crescente de poder nas suas próprias mãos nos últimos 12 anos. E aumentou o papel do Partido Comunista Chinês tanto na sociedade como na economia. Enquanto no período de Deng Xiaoping, Jiang Zemin, Hu Jintao e Wen Jiabao tudo tinha muito a ver com aumentar o papel do mercado, Xi Jinping tem sobretudo aumentando o controle estatal e partidário sobre o povo chinês. E também penso que realmente tomou medidas para restringir a quantidade de informação que flui, tanto dentro da sociedade chinesa como também para o mundo exterior. Mais recentemente vemos isso em termos de informação económica, dado que a China restringiu os tipos de informação económica a que os analistas estrangeiros e as empresas têm acesso, o que torna muito mais difícil, por exemplo, para as multinacionais fazerem negócios inteligentes. Securitarizou assim a economia de uma forma que não tínhamos visto anteriormente.
Em termos de política externa, que tipo de mudança consegue identificar?
Penso que, em termos de política externa, tudo se resume ao grande rejuvenescimento da nação chinesa, que passa por reafirmar a centralidade da China na cena global. E fez isso em múltiplas dimensões. Primeiro, em termos de redesenhar o mapa da China, de modo a incluir todo o território que a China considera ser o seu território soberano. Acima de tudo, é Taiwan que quer de volta, e uma enorme área de domínio marítimo no Mar da China Meridional. Mas a China também tem disputas territoriais com o Butão, o Nepal, e a Índia, obviamente. Com o Japão também, as Ilhas Diaoyu-Senkaku. Ao todo, creio que são 14 conflitos fronteiriços e territoriais diferentes que a China tem.
E incluiu todos esses territórios disputados no mapa oficial?
Certo. Xi Jinping gostaria de incluir todos eles. Mesmo à Rússia os chineses avisaram no ano passado de que havia áreas do Extremo Oriente russo que deveriam ser conhecidas pelos seus nomes chineses. Portanto, há uma espécie de expansionismo territorial para Xi Jinping. Em segundo lugar, quer que os Estados Unidos sejam eliminados como potência militar dominante no Indo-Pacífico. A China deveria ser, na opinião de Xi Jinping, a potência dominante naquela região. Penso que o terceiro ponto tem realmente a ver com alargar a influência chinesa, seja ela económica, política, militar, a nível global. A Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota é realmente o melhor exemplo, e começou como um projeto de infraestrutura pesada em 2013, contribuindo para a construção de estradas e ferrovias, etc. Mas há também a Rota da Seda digital, que trata de cabos submarinos e comércio eletrónico e 5G. Há a Rota da Seda da saúde, exportando medicina tradicional chinesa ou médicos para o exterior. Existe o ambiente, com a Rota da Seda verde. Existe a Rota da Seda polar. Tudo Rotas da Seda através das quais a China pode transferir não só os seus produtos, as suas mercadorias, mas também os seus valores políticos. A China está a criar centros de formação política para funcionários estrangeiros, onde podem vir e aprender o modelo chinês. Xi Jinping disse em 2017 que a China oferecia uma alternativa ao modelo ocidental de democracia de mercado. Assim, os países que estavam insatisfeitos poderiam olhar para a China e agora têm estes centros de formação. E depois penso que, finalmente, nas Nações Unidas, procura refazer o sistema de normas e valores no cenário global para o alinhar com os interesses chineses. Portanto, parte disso poderá ser o impulso de desdolarização que a China está a fazer agora, aumentando o papel da moeda chinesa. Poderia também ser a mudança das normas em torno dos direitos humanos, a diminuição da ênfase nos direitos políticos e civis nas Nações Unidas, a promoção da Iniciativa Uma Faixa, Uma Rota através de mais de duas dezenas de agências e programas da ONU. Então, basicamente, uma espécie de estratégia multinível em que a China assume as suas próprias prioridades internas, económicas e políticas, exporta-as globalmente através de coisas como Uma Faixa, Uma Rota, e depois procura cimentá-las através de instituições e agências internacionais.
Está a descrever a China de Xi Jinping como um país muito poderoso, muito ambicioso, mas, ao mesmo tempo, surgem novos problemas. A economia, por exemplo não está a crescer à mesma velocidade de antes, pois os tempos dos dois dígitos ficaram para trás. E há também um problema demográfico. Podemos dizer que a China está perto dos limites do seu poder?
Chamamos a isso o pico da China. Nos EUA, este é um grande debate nos círculos de estudos chineses. Mas penso que a China, tal como os Estados Unidos, tem uma economia muito grande e complexa, e nunca se quer dizer que acabou até que acabe. E assim, para mim, tendo a olhar para a China de forma ampla: por exemplo, a economia chinesa. Houve um grande problema no setor imobiliário, que representa 25% do PIB. Um impacto grande, com certeza. Há o problema da dívida dos governos locais, que continuou a crescer, apesar de Xi Jinping supostamente ter tentado resolver esta questão, mas não tendo feito qualquer progresso. Há o problema demográfico, como sugere, mas é um problema de longo prazo. A curto prazo existe sim um enorme problema com o desemprego juvenil que dizem estar resolvido, mas ninguém acredita. Era superior a 20% há apenas seis meses. Depois fizeram uma reavaliação de como calculam os números do desemprego, e agora caiu para 5-6%. Mas ninguém acredita nisso. Então, sim, está certo, estão a enfrentar muitos desafios. Mas pensemos na economia chinesa como um organismo muito complexo onde partes da economia chinesa podem ter um desempenho muito bom. A China continua a ser líder em inovação. Está a exportar tudo o que é verde e a investir cada vez mais em coisas como semicondutores, em coisas como IA, através da economia, que têm o potencial de pagar enormes dividendos ao longo do tempo, enquanto deixa 600 milhões de pessoas a viver com 150 dólares por mês ou até menos. Portanto, numa democracia seria muito difícil manter esse tipo de equilíbrio em que não se investe no bem-estar social interno enquanto se injeta tudo em investimento na indústria e nas exportações e em coisas que continuam como Uma Faixa, Uma Rota. Haveria protestos.
Mas quando falamos do Partido Comunista Chinês, sabemos que não existe mais um Partido Comunista em termos puramente ideológicos. Que a sua legitimidade vem da forma como proporciona bem-estar à população. Não tendo tanto sucesso como antes a nível económico, há alguma possível contestação que poderia pôr em perigo a posição do Partido Comunista?
Se olhar para 2010, 2011, poderá ver 180 mil protestos na China. Alguns deles com 20 mil ou 30 mil pessoas, por causa do meio ambiente, das pensões, das questões imobiliárias. E houve apelos a uma reforma política. Todas essas coisas ainda existem na China, mas foram reprimidas. Então, sobre se poderíamos ver algum tipo de protesto que levaria Xi Jinping a ser pelo menos pressionado para que tivesse que fazer novamente parte de um processo coletivo de tomada de decisão, acho que é possível. Pensei até que a covid poderia ter sido o factor que levaria a isso, mas não aconteceu. E penso que parte do desafio é quem, dentro da liderança chinesa, está preparado para o afastar? Então, quais são as outras opções dentro da liderança chinesa? Quem se vai apresentar e dizer que Xi Jinping os levou na direção errada? Estes problemas, os problemas económicos, toda a pressão do mundo exterior, a decisão de apoiar a Rússia, são todas más decisões e é preciso dar um passo atrás. Foi o que aconteceu com Mao Tsé-tung após o Grande Salto em Frente. Isso é possível? É possível. É difícil de ver agora, mas sou originalmente uma estudiosa da União Soviética, por isso assisti à emergência de Mikhail Gorbachev e digo que nunca se sabe o que pode acontecer. Não estamos presentes nas discussões de alto nível.
Mencionou as relações entre a China e a Rússia. Historicamente, há muita disputa entre a China e a Rússia, mesmo que hoje sejam aliadas. Mesmo na época da Guerra Fria, escolheram lados diferentes em determinado momento. Agora a China tem muito mais sucesso económico do que a Rússia, mesmo que a Rússia ainda seja uma superpotência nuclear. Esta aliança entre estes dois países é algo que ocorre apenas porque ambos são anti-EUA, ou porque partilham realmente interesses comuns agora que são fortes o suficiente para mantê-los unidos?
Penso que não se trata apenas de ser anti-EUA, embora esse seja um elemento fundamental. Penso que mesmo antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, votavam muito juntos nas Nações Unidas sobre questões de direitos humanos, sobre questões de soberania, e cada vez mais sobre coisas como a governação da Internet. Chineses e russos apoiam-se mutuamente. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia pela primeira vez, na Crimeia, os chineses abstiveram-se na ONU, não condenaram. E se é verdade que a Rússia não se prontificou a apoiar a China na sua posição no Mar da China Meridional, será de esperar que, se a China quiser tomar medidas contra Taiwan, a Rússia não se oporá. Acho também que as duas economias são complementares. A Rússia tem muitos recursos naturais aos quais a China deseja ter acesso. Eles olham não apenas para os Estados Unidos como adversários, mas também para os valores mais amplos em torno da democracia. E estão alinhados nos seus esforços para minar isso. Xi Jinping e Vladimir Putin têm claramente uma relação próxima. Xi Jinping disse pelo menos duas vezes que Putin é o seu melhor amigo no sistema internacional. Eu levo isso a sério.
É possível dizer que a China é agora o irmão mais velho e que tudo isto é aceitável para a Rússia?
Comecei na minha carreira académica por estudar a União Soviética, e lembro-me dos tempos em que vivia em Leningrado, quando ainda era Leningrado, e os comerciantes chineses costumavam vir à Rússia, e recordo como os russos os desprezavam, com seus grandes sacos vermelhos, brancos e azuis cheios de coisas para tentar vender. Lembro-me de como eram desprezados. Mas fiquei surpreendida, numa ida à Rússia em 2018, numa conversa entre um certo grupo de académicos, por estarem, com exceção de um, dispostos a aceitar a noção de que a China era a maior potência económica, e que isso ainda traria algumas vantagens para a Rússia. Que poderiam trabalhar juntos dessa maneira. Penso que, naquele momento, também, a Rússia ainda vendia muitas armas à China. Ainda é uma potência militar e por direito próprio. Ainda tem o seu próprio conjunto de clientes, não quero dizer Estados clientes, mas sim relações, por exemplo em África, que são independentes daquelas que a China tem com os Estados africanos. As suas próprias relações com a Coreia do Norte, por exemplo, e com os estados da Ásia Central são também evidentes. Mas sim, é necessária uma certa acomodação na Rússia com esta noção de que a China é uma potência maior. Xi Jinping trabalhou arduamente nos últimos anos para garantir, nas suas declarações públicas, que apresenta a Rússia como um igual. Não faz sentido que Xi Jinping fale da Rússia como um jogador de segunda linha, como uma potência menor. Quando Wang Yi, o ministro dos Negócios Estrangeiros, fez o seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, ficou claro que os Estados Unidos e a China eram as superpotências, as grandes potências, mas com a Rússia havia um novo tipo de relacionamento entre grandes potências. Com a Europa, só mencionou que a Europa e a China têm civilizações antigas, e acho que falou de grandes mercados, ou algo parecido. Essa é a natureza da China e da Rússia, o relacionamento que têm. Então, novamente, acho que Xi tem muito cuidado ao apresentar a Rússia como igual à China.
Taiwan, mas também em geral a política externa dos EUA em relação à China, parece um dos poucos assuntos que podemos imaginar que havendo uma nova presidência Biden ou um regresso de uma presidência Trump não haverá grandes mudanças? Concorda?
Acho pode haver diferenças. Penso que ninguém tem a certeza de como o presidente Trump reagiria à agressão militar da China Continental contra Taiwan. Penso que, em vários momentos, o presidente Trump adotou uma abordagem muito transacional à política externa, à diplomacia. Do género, bem, se a China fizer isso connosco no comércio, não os incomodaremos com Taiwan. Não sabemos o que Trump faria, para ser franca. Claro que enfrentaria muita pressão dos republicanos no Congresso para sair em defesa de Taiwan se a China lançasse uma ação militar. Haveria também a questão do seu legado, o que não aconteceu na sua primeira presidência. Então seria isso. E se de alguma forma Trump perdesse Taiwan para a China, e isso fizesse parte dos livros de história, esse receio talvez pudesse afetar a sua tomada de decisão. Mas a verdade é que o presidente Biden disse três vezes que os Estados Unidos sairão em defesa de Taiwan, abertamente, embora isso não seja uma política declarada dos EUA, o que é uma ambiguidade estratégica. O presidente Biden disse isso, mas o presidente Trump nunca fez tal promessa.