É uma neurocientista e investigadora. O que a motivou a deixar os laboratórios e a tornar-se uma “ativista” da comunicação da ciência junto do cidadão comum?
O meu percurso profissional iniciou-se dentro de um laboratório num instituto de investigação e, agora, o meu dia de trabalho faz-se em contexto de escola, academia sénior, biblioteca ou mercado, a coletar amostras de água junto ao rio ou a explorar a biodiversidade de insetos com jovens, ou em encontros ou reuniões com produtores locais, investigadores ou dirigentes políticos. A comunicar ciência, sim, mas acima de tudo a tentar utilizar a ciência como uma ferramenta para atingirmos objetivos comuns, entre as várias partes. Uma ferramenta que contribua para a construção de cidadãos mais literatos, críticos, civicamente responsáveis e mais envolvidos com a sua comunidade e o seu território. A desenvolver mecanismos que aproximem o conhecimento produzido nos laboratórios do quotidiano do cidadão comum. Embora tenha deixado a bancada, não sinto que tenha deixado o laboratório. O laboratório agora é o território, no concelho raiano de Figueira de Castelo Rodrigo e na Plataforma de Ciência Aberta. Acredito que os territórios de baixa densidade têm um potencial imenso para a implementação efetiva deste tipo de estratégias de proximidade. Também se pode dizer que sou, um pouco, uma ativista do interior do país.
De certa forma, olhamos para a ciência e para os cientistas como uma elite, enquanto o nosso posicionamento é o de recetores e beneficiários dos avanços nestas áreas. No caso em apreço, de que forma é o cidadão um produtor de ciência?
Antes de pensarmos de que forma é que o cidadão poderá ser um produtor de ciência, penso que é importante refletirmos porque será relevante os cidadãos serem produtores de ciência. Quais serão os benefícios e as vantagens da ciência cidadã, da participação de indivíduos em atividades de investigação científica? Do ponto de vista científico, poderá facilitar a investigação a uma escala maior, com mais pessoas e em mais pontos do mundo, permitir explorar novas fontes de informação, conhecimentos e perspetivas, e ainda melhorar a abertura, a transparência e a fiabilidade da investigação. Por sua vez, pensando no impacto societal, permite estabelecer ligações mais fortes entre cidadãos e cientistas, aumentar a literacia científica e garantir que os cidadãos compreendem melhor a investigação científica e os cientistas as questões atuais da sociedade.
Voltando à sua questão inicial, de que forma é que o cidadão poderá ser um produtor de ciência, tal pode acontecer de diferentes formas, através da participação nas várias fases do processo científico, seja no desenho de questões e metodologias de investigação, na coleta e análise de dados e até na sua interpretação. Contudo, é fundamental reconhecer que a ciência cidadã acarreta diversos desafios, nomeadamente do ponto de vista científico, uma vez que um dos objetivos últimos é construir conhecimento. E para tal, é essencial garantir a sistematização das metodologias, a reprodutibilidade dos resultados e a qualidade dos dados. No entanto, é também importante reconhecer que já existem diversos exemplos com impacto demonstrado a nível científico, societal e até político. Por exemplo, na monitorização da biodiversidade e da qualidade da água, e na astronomia, que permitiu a descoberta de um asteroide. Um ótimo exemplo é também o estudo de ciência cidadã sobre as tendências da biomassa de insetos na Alemanha, que chegou até a desencadear a adoção da nova lei alemã de proteção dos insetos.
E em Portugal?
No nosso país temos também observado um crescimento considerável dos projetos de ciência cidadã nacionais e da própria comunidade, da qual fazem parte tanto profissionais do mundo académico como da sociedade civil e até cidadãos. Recentemente, formalizámos a Rede Portuguesa de Ciência Cidadã, com sede em Figueira de Castelo Rodrigo.
Está ligada à Plataforma de Ciência Aberta do município de Figueira de Castelo Rodrigo. No site que apresenta a iniciativa encontramos um elenco de projetos em curso. Quer destacar alguns deles e de que forma estão a receber o contributo da comunidade?
Sim, destaco três projetos. Um é o projeto BioD’Agro, num consórcio muito diverso de parceiros, entre universidades, empresas e municípios. Trata-se da criação de um laboratório de inovação numa quinta em pleno Parque Natural do Douro Internacional. O BioD’Agro tem desenvolvido um sistema inteligente de informação e apoio à decisão aos agricultores, através da instalação de ilhas de sensores no terreno. Numa primeira fase, fizemos um levantamento, junto dos produtores, das suas necessidades e desafios, bem como sobre a potencial utilidade de uma ferramenta como o BioD’Agro nas suas práticas diárias. Numa segunda fase, estamos a desenvolver o modelo de negócio para a implementação efetiva desta ferramenta no quotidiano do território.
O plano será criar um gabinete de transferência de conhecimento, no município, que permita fazer a tradução dos dados oriundos da tecnologia em informação relevante e contextualizada para os agricultores, através da formação de técnicos municipais especializados, que serão a interface contínua entre as universidades/empresas e o território.
Desde que começamos, em 2017, que temos como metodologia orientadora a “Escola Aberta”. Nesta, os projetos educativos respondem às necessidades e desafios da vida real e baseiam-se no trabalho colaborativo com parceiros locais, promovendo ambientes de aprendizagem que contribuem para o desenvolvimento e o bem-estar das comunidades. Desenvolvemos uma sinergia com o Agrupamento de Escolas de Figueira de Castelo Rodrigo, com quem cocriámos, ao nível da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, um programa onde os alunos identificam em contexto de aula os desafios e oportunidades da sua comunidade. Em colaboração com parceiros locais, desenvolvem projetos que contribuam para a sua resolução. Em 2019, e tendo como piloto o trabalho desenvolvido pela Plataforma, integrámos o consórcio europeu Open Science Hub, financiado pela Comissão Europeia, coordenado pelo professor Pedro Russo, da Universidade de Leiden, e também fundador e mentor da Plataforma de Ciência Aberta. Nesse momento, mudei-me para Leiden com a responsabilidade pela gestão desta rede internacional, que incluía nove países [Portugal, Países Baixos, Irlanda, Suíça, França, Áustria, República Checa, Grécia e Itália].
Há um terceiro projeto que quer mencionar...
Sim. Trata-se de um consórcio ibérico e de ação transfronteiriça, coordenado pela Rewilding Portugal e que junta sete parceiros. Denomina-se Life Lupi Lynx e tem no seu âmago criar as condições sócio ecológicas que contribuam para a recuperação do lobo-ibérico e do lince-ibérico a sul do rio Douro, abarcando toda a região da Beira Interior em Portugal, nos distritos da Guarda e de Castelo Branco, e ainda a província de Cáceres, na Extremadura, em Espanha. Sabemos que este é um tema de extrema importância, e muito sensível, para as comunidades locais, nomeadamente para os pastores e criadores de gado. Sentimos uma grande responsabilidade na sua execução. Seremos uma das entidades responsáveis pela mediação e procura de soluções positivas que compatibilizem as atividades humanas com a presença destes predadores.
De que forma a comunidade perceciona esta aproximação da ciência, tecnologia e inovação ao seu quotidiano considerando que este é um projeto já com sete anos?
É muito importante fazer um reconhecimento da abertura da comunidade e das instituições do território que nos acolhem, em particular, do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo e, pela qual nos sentimos muito gratos. Depois, penso que também é relevante frisar que a atitude da Plataforma não é a de atuar de forma paralela às instituições e às pessoas, com os seus programas desvinculados da realidade do território, mas sim, trabalhar juntamente com as equipas existentes no terreno na procura de necessidades conjuntas e na definição, e persecução, de objetivos comuns. Tivemos a sorte e o privilégio de nos podermos juntar a algumas redes nacionais e internacionais ao longo dos últimos anos, como é o caso da Rede de Centros Ciência Viva, que integrámos em 2021, enquanto Membro Associado, ou da Open Science Hub.
Estabeleceram também uma Escola Ciência Viva. Que trabalho estão a desenvolver nesse contexto?
Estabelecemos a Escola Ciência Viva no edifício da Plataforma de Ciência Aberta, onde era a antiga escola primária de Barca D’Alva, e que acolheu a sua última turma há mais de 20 anos. Isto quer dizer que a Plataforma recebe agora, de forma contínua, alunos do pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico para uma semana repleta de aprendizagens e descobertas nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia, artes e matemática (STEAM), com um foco em temas socialmente relevantes e com ligação ao território.
Outro programa que me tem dado um entusiasmo particular, dada a diversidade de parceiros e de conteúdos, é o aBEIRAr, um trocadilho entre o nome Beira e o verbo abeirar. Trata-se de aBEIRAr a ciência, a cultura e as comunidades locais e promover a construção de conhecimento e a valorização do território das Beiras e Serra da Estrela. Tendo como elemento central a malha de bibliotecas da Rede Intermunicipal de Bibliotecas das BSE, em conjunto com a Universidade da Beira Interior e o Estrela Geopark Mundial da UNESCO, palmilhamos os concelhos e identificamos temas relevantes e quotidianos para os cidadãos, os quais casamos com a ciência e a investigação, transformando-os depois em eventos de fruição do território, através de múltiplos olhares e perspetivas. Se tudo correr bem, um dos próximos passos será o desenvolvimento de projetos baseados em investigação participativa, construídos de forma alinhada com as necessidades e a realidade do território.
Acesso Zoom:
Link: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/93174599498
ID Reunião: 93174599498