Ciclo de conferências Para uma Cultura de Dados Científicos Abertos
17 janeiro 2024 às 07h00
Leitura: 13 min

Aproximar a ciência dos cidadãos “melhora abertura, transparência e fiabilidade da investigação”

Neurocientista de formação, Maria Vicente deixou os laboratórios em Lisboa para coordenar um projeto de aproximação da ciência ao cidadão em Figueira de Castelo Rodrigo, através da Plataforma de Ciência Aberta.

A recuperação do lobo-ibérico e do lince-ibérico e o envolvimento dos jovens do concelho beirão em projetos comunitários, estão entre os programas perseguidos pela Plataforma de Ciência Aberta. Esta quarta-feira, 17 de janeiro (18h00), Maria Vicente é a convidada do ciclo de conferências Para uma Cultura de Dados Científicos Abertos, organizado pela Academia das Ciências de Lisboa. O encontro online centra-se no tema “Cidadania científica, os cidadãos na produção de ciência”.

É uma neurocientista e investigadora. O que a motivou a deixar os laboratórios e a tornar-se uma “ativista” da comunicação da ciência junto do cidadão comum?

O meu percurso profissional iniciou-se dentro de um laboratório num instituto de investigação e, agora, o meu dia de trabalho faz-se em contexto de escola, academia sénior, biblioteca ou mercado, a coletar amostras de água junto ao rio ou a explorar a biodiversidade de insetos com jovens, ou em encontros ou reuniões com produtores locais, investigadores ou dirigentes políticos. A comunicar ciência, sim, mas acima de tudo a tentar utilizar a ciência como uma ferramenta para atingirmos objetivos comuns, entre as várias partes. Uma ferramenta que contribua para a construção de cidadãos mais literatos, críticos, civicamente responsáveis e mais envolvidos com a sua comunidade e o seu território. A desenvolver mecanismos que aproximem o conhecimento produzido nos laboratórios do quotidiano do cidadão comum. Embora tenha deixado a bancada, não sinto que tenha deixado o laboratório. O laboratório agora é o território, no concelho raiano de Figueira de Castelo Rodrigo e na Plataforma de Ciência Aberta. Acredito que os territórios de baixa densidade têm um potencial imenso para a implementação efetiva deste tipo de estratégias de proximidade. Também se pode dizer que sou, um pouco, uma ativista do interior do país.

De certa forma, olhamos para a ciência e para os cientistas como uma elite, enquanto o nosso posicionamento é o de recetores e beneficiários dos avanços nestas áreas. No caso em apreço, de que forma é o cidadão um produtor de ciência?

Antes de pensarmos de que forma é que o cidadão poderá ser um produtor de ciência, penso que é importante refletirmos porque será relevante os cidadãos serem produtores de ciência. Quais serão os benefícios e as vantagens da ciência cidadã, da participação de indivíduos em atividades de investigação científica? Do ponto de vista científico, poderá facilitar a investigação a uma escala maior, com mais pessoas e em mais pontos do mundo, permitir explorar novas fontes de informação, conhecimentos e perspetivas, e ainda melhorar a abertura, a transparência e a fiabilidade da investigação. Por sua vez, pensando no impacto societal, permite estabelecer ligações mais fortes entre cidadãos e cientistas, aumentar a literacia científica e garantir que os cidadãos compreendem melhor a investigação científica e os cientistas as questões atuais da sociedade.

Voltando à sua questão inicial, de que forma é que o cidadão poderá ser um produtor de ciência, tal pode acontecer de diferentes formas, através da participação nas várias fases do processo científico, seja no desenho de questões e metodologias de investigação, na coleta e análise de dados e até na sua interpretação. Contudo, é fundamental reconhecer que a ciência cidadã acarreta diversos desafios, nomeadamente do ponto de vista científico, uma vez que um dos objetivos últimos é construir conhecimento. E para tal, é essencial garantir a sistematização das metodologias, a reprodutibilidade dos resultados e a qualidade dos dados. No entanto, é também importante reconhecer que já existem diversos exemplos com impacto demonstrado a nível científico, societal e até político. Por exemplo, na monitorização da biodiversidade e da qualidade da água, e na astronomia, que permitiu a descoberta de um asteroide. Um ótimo exemplo é também o estudo de ciência cidadã sobre as tendências da biomassa de insetos na Alemanha, que chegou até a desencadear a adoção da nova lei alemã de proteção dos insetos.

E em Portugal?

No nosso país temos também observado um crescimento considerável dos projetos de ciência cidadã nacionais e da própria comunidade, da qual fazem parte tanto profissionais do mundo académico como da sociedade civil e até cidadãos. Recentemente, formalizámos a Rede Portuguesa de Ciência Cidadã, com sede em Figueira de Castelo Rodrigo.

Está ligada à Plataforma de Ciência Aberta do município de Figueira de Castelo Rodrigo. No site que apresenta a iniciativa encontramos um elenco de projetos em curso. Quer destacar alguns deles e de que forma estão a receber o contributo da comunidade?

Sim, destaco três projetos. Um é o projeto BioD’Agro, num consórcio muito diverso de parceiros, entre universidades, empresas e municípios. Trata-se da criação de um laboratório de inovação numa quinta em pleno Parque Natural do Douro Internacional. O BioD’Agro tem desenvolvido um sistema inteligente de informação e apoio à decisão aos agricultores, através da instalação de ilhas de sensores no terreno. Numa primeira fase, fizemos um levantamento, junto dos produtores, das suas necessidades e desafios, bem como sobre a potencial utilidade de uma ferramenta como o BioD’Agro nas suas práticas diárias. Numa segunda fase, estamos a desenvolver o modelo de negócio para a implementação efetiva desta ferramenta no quotidiano do território.

O plano será criar um gabinete de transferência de conhecimento, no município, que permita fazer a tradução dos dados oriundos da tecnologia em informação relevante e contextualizada para os agricultores, através da formação de técnicos municipais especializados, que serão a interface contínua entre as universidades/empresas e o território.

Desde que começamos, em 2017, que temos como metodologia orientadora a “Escola Aberta”. Nesta, os projetos educativos respondem às necessidades e desafios da vida real e baseiam-se no trabalho colaborativo com parceiros locais, promovendo ambientes de aprendizagem que contribuem para o desenvolvimento e o bem-estar das comunidades. Desenvolvemos uma sinergia com o Agrupamento de Escolas de Figueira de Castelo Rodrigo, com quem cocriámos, ao nível da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, um programa onde os alunos identificam em contexto de aula os desafios e oportunidades da sua comunidade. Em colaboração com parceiros locais, desenvolvem projetos que contribuam para a sua resolução. Em 2019, e tendo como piloto o trabalho desenvolvido pela Plataforma, integrámos o consórcio europeu Open Science Hub, financiado pela Comissão Europeia, coordenado pelo professor Pedro Russo, da Universidade de Leiden, e também fundador e mentor da Plataforma de Ciência Aberta. Nesse momento, mudei-me para Leiden com a responsabilidade pela gestão desta rede internacional, que incluía nove países [Portugal, Países Baixos, Irlanda, Suíça, França, Áustria, República Checa, Grécia e Itália].

Há um terceiro projeto que quer mencionar...

Sim. Trata-se de um consórcio ibérico e de ação transfronteiriça, coordenado pela Rewilding Portugal e que junta sete parceiros. Denomina-se Life Lupi Lynx e tem no seu âmago criar as condições sócio ecológicas que contribuam para a recuperação do lobo-ibérico e do lince-ibérico a sul do rio Douro, abarcando toda a região da Beira Interior em Portugal, nos distritos da Guarda e de Castelo Branco, e ainda a província de Cáceres, na Extremadura, em Espanha. Sabemos que este é um tema de extrema importância, e muito sensível, para as comunidades locais, nomeadamente para os pastores e criadores de gado. Sentimos uma grande responsabilidade na sua execução. Seremos uma das entidades responsáveis pela mediação e procura de soluções positivas que compatibilizem as atividades humanas com a presença destes predadores.

De que forma a comunidade perceciona esta aproximação da ciência, tecnologia e inovação ao seu quotidiano considerando que este é um projeto já com sete anos?

É muito importante fazer um reconhecimento da abertura da comunidade e das instituições do território que nos acolhem, em particular, do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo e, pela qual nos sentimos muito gratos. Depois, penso que também é relevante frisar que a atitude da Plataforma não é a de atuar de forma paralela às instituições e às pessoas, com os seus programas desvinculados da realidade do território, mas sim, trabalhar juntamente com as equipas existentes no terreno na procura de necessidades conjuntas e na definição, e persecução, de objetivos comuns. Tivemos a sorte e o privilégio de nos podermos juntar a algumas redes nacionais e internacionais ao longo dos últimos anos, como é o caso da Rede de Centros Ciência Viva, que integrámos em 2021, enquanto Membro Associado, ou da Open Science Hub.

Estabeleceram também uma Escola Ciência Viva. Que trabalho estão a desenvolver nesse contexto?

Estabelecemos a Escola Ciência Viva no edifício da Plataforma de Ciência Aberta, onde era a antiga escola primária de Barca D’Alva, e que acolheu a sua última turma há mais de 20 anos. Isto quer dizer que a Plataforma recebe agora, de forma contínua, alunos do pré-escolar e do primeiro ciclo do ensino básico para uma semana repleta de aprendizagens e descobertas nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia, artes e matemática (STEAM), com um foco em temas socialmente relevantes e com ligação ao território.

Outro programa que me tem dado um entusiasmo particular, dada a diversidade de parceiros e de conteúdos, é o aBEIRAr, um trocadilho entre o nome Beira e o verbo abeirar. Trata-se de aBEIRAr a ciência, a cultura e as comunidades locais e promover a construção de conhecimento e a valorização do território das Beiras e Serra da Estrela. Tendo como elemento central a malha de bibliotecas da Rede Intermunicipal de Bibliotecas das BSE, em conjunto com a Universidade da Beira Interior e o Estrela Geopark Mundial da UNESCO, palmilhamos os concelhos e identificamos temas relevantes e quotidianos para os cidadãos, os quais casamos com a ciência e a investigação, transformando-os depois em eventos de fruição do território, através de múltiplos olhares e perspetivas. Se tudo correr bem, um dos próximos passos será o desenvolvimento de projetos baseados em investigação participativa, construídos de forma alinhada com as necessidades e a realidade do território.

Acesso Zoom:

Link: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/93174599498

ID Reunião: 93174599498