Há inundações, pragas de baratas e infiltrações
17 janeiro 2024 às 07h00
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Lisboa. Bairros camarários sem obras apresentam riscos e problemas sérios

Voam azulejos do alto dos prédios, os elevadores não funcionam, há inundações, pragas de baratas e infiltrações. Há bairros onde nunca houve obras de fundo e o Portugal Novo poderá ter de ser demolido. A câmara de Lisboa promete investir milhões em reabilitação.

“Deus queira que nunca caia um bocado de cimento em cima da cabeça de um miúdo!”. Avelino Ferreira agarra-se à fé divina perante o estado a que chegaram os prédios do Bairro do Condado, a antiga Zona J, de Chelas. Estamos no corredor onde se localizam os lotes 563 e 564. “Estes prédios têm 40 anos e nunca tiveram quaisquer obras”, denuncia o fundador da Associação de Moradores do Condado. Por ali, há uma associação onde as crianças do bairro se juntam para várias atividades. “Só que quando está bom tempo os miúdos andam aqui na rua a jogar à bola, na correria, a brincar. Já caíram bocados de cimento dos prédios. Felizmente, nunca aconteceu caírem em cima de alguém. Se isso um dia acontecer, de quem é que vai ser a responsabilidade?”, questiona Avelino Ferreira, que mora no bairro desde a sua fundação, em maio de 1980, e já foi vogal com os pelouros da Higiene Urbana, Iluminação Pública e Habitação, da Junta de Freguesia de Marvila.

Conhece os prédios como as palmas das suas mãos. E desvenda os problemas que ali se vivem. “O principal problema são as infiltrações de águas. Nas esquinas das torres não há nenhuma que não tenha infiltrações de água que passam para dentro das casas”. O caso é sério. “Ainda há pouco tempo, no lote 552, esteve aí a Proteção Civil e os bombeiros. Depois vieram os ‘homens-aranha’ [técnicos de trabalho em alturas] e tiveram de fazer a limpeza”. Noutra torre, de 14 andares, as autoridades não chegaram a tempo. “Tive uma reunião em maio com o presidente da Gebalis [empresa gestora dos bairros municipais de Lisboa] e com a Filipa Roseta [vereadora com o pelouro da Habitação da Câmara Municipal de Lisboa, CML]. Apontei para o lote 546 porque estava a formar-se um balão muito grande na parede. Eu avisei que aquilo ia cair tudo. E assim foi: quando começaram as primeiras chuvas a cobertura da parede do prédio caiu por ali abaixo e deve ter feito mossa nalguns carros. Não fizeram caso do que eu disse, podiam ter feito logo a intervenção”, lamenta o líder da comissão de moradores.

A humidade não se limita ao exterior dos prédios. Entra, sem pedir licença, dentro da casa das pessoas. Elsa Pinheiro mora no segundo piso de uma torre com 13 andares e abre-nos a porta. Quer mostrar as condições em que vive. “Desde sempre que tenho a casa assim, já moro aqui há 34 anos. Tenho infiltrações, humidade, isto estraga-me os móveis todos”, lamenta a moradora, inquilina municipal. “É muito complicado viver aqui. O meu orçamento não dá para fazer obras. Já pintei várias vezes a casa mas a humidade aparece outra vez”. E estas circunstâncias já causaram prejuízos à saúde da filha de Elsa. “A minha filha teve bronquite alérgica quando era miúda. Hoje em dia dorme de carapuço porque fica muito aflita com o frio e com a humidade. Isto faz mal à saúde, toda esta humidade e o bolor. Nós vamos à Gebalis, expomos os problemas, mas nada acontece”, queixa-se esta inquilina da CML. 

Os elevadores são outro quebra-cabeças para os moradores do Bairro do Condado.  Sobretudo porque no bairro as torres têm 13 ou 14 andares e os prédios mais baixos, as chamadas ‘bandas’, têm oito pisos. “Isso é outra guerra. Há elevadores parados há uma quantidade de tempo, alguns por falta de peças. Os elevadores têm 40 anos, embora muitos já tenham sido remodelados, mas continuam com muitos problemas”. Sempre que os ascensores não funcionam os moradores não têm outro remédio senão usar as escadas. E, por vezes, as consequências não são as melhores. “No lote 540, há uns dias, uma senhora idosa, com cerca de 80 anos, tinha de sair para ir à fisioterapia. Só que a fisioterapia que ela fez foi cair nas escadas porque o elevador não estava a funcionar”. 

E, para piorar o cenário, há canos que nunca foram mudados e já pingam água - “está tudo roto”, diz Avelino Ferreira - ferros da estrutura dos edifícios à mostra, telhados com amianto e pragas de baratas. “Anualmente, uma empresa que trabalhava para a CML vinha fazer a desratização e desbaratização dos coletores de esgotos. Este ano ainda não os vi cá a fazer isso. As tampas dos esgotos têm um encaixe e as baratas saem por esse espaço. Nos rés-do-chão entram dentro das casas e por lá ficam”, denuncia o presidente da associação de moradores do Condado. 

Confrontada com a situação que se vive no Bairro do Condado, a CML garante que está a ser feito um investimento de aproximadamente oito milhões de euros “numa regeneração integral do bairro”. “Está programada a intervenção em vários lotes. O bairro tem sido objeto de várias intervenções de reabilitação incluindo a redução da densidade de construção com demolição de edifícios”. Estas demolições começaram a acontecer em 2009, quando foram abaixo oito prédios. “Era o ‘corredor da morte’. Mas eu sempre passei por lá e nunca se meteram comigo”, recorda Avelino Ferreira. Entre estes prédios havia corredores estreitos e escuros e, à época, foram noticiados vários casos de violência e ajustes de contas entre gangs, o que levou a CML a tomar esta medida. Atualmente, o DN assistiu a andaimes montados em dois prédios. Certo é que a edilidade promete que “novos investimentos estão em fase de estudo para uma aplicabilidade prevista a médio prazo (2024, 2025, 2026, designadamente as bandas de edifícios 530, 550, 551, 552, 557, 558, 559, 560), com uma previsão de investimento de 4,5 milhões de euros”. 

“Vivia-se melhor nas barracas”

Não é só em Chelas que se vive mal. Na Quinta do Lavrado, onde antes havia um mar de barracas que compunha a antiga Curraleira, as circunstâncias também não são favoráveis. “Vivia-se melhor nas barracas”, desabafa João Raimundo, dinamizador da Associação de moradores Geração com Futuro. “Isto já nasceu torto e vai morrer torto. Basta ver que as entradas dos prédios em vez de estarem viradas para a avenida estão de frente para a encosta do cemitério do Alto de S. João”. Por ali, vê-se muito lixo, mato, e prédios muito degradados. Os edifícios foram construídos em 2001, ou seja há 23 anos, e nunca tiveram qualquer obra de fundo. “Muitas entradas dos prédios não têm iluminação, não há campainhas, não há portas, as caixas dos correios estão todas danificadas e os elevadores não trabalham”, conta João Raimundo. “Sentimo-nos aqui completamente esquecidos. Estamos metidos num buraco, parece que vivemos fora da cidade. Aliás, aqui não há sequer uma mercearia, só temos um café. Para ir comprar pão temos de ir até à Praça Paiva Couceiro, no Alto de S. João. E transportes públicos também só temos o 730. Por exemplo, a carreira de bairro fica lá em cima, na rotunda, e não vem aqui ao bairro. Para nos abastecermos ou vamos de carro ou vamos a pé, o que dificulta muito a vida, sobretudo aos mais velhos”, acrescenta o dinamizador da Geração com Futuro.

O DN fez a experiência e subiu as escadas até ao último piso de um dos prédios, um sétimo andar. Chegámos ofegantes. “Moro no terceiro piso, sou asmática e tenho de subir e descer isto porque não os elevadores estão estragados há cerca de um ano”, explica Isabel Batista, uma das residentes. A mulher tem, ainda, deficiência física numa perna, o que lhe dificulta ainda mais a vida. “Isto é uma vergonha, está tudo mal”. A PSP fez uma intervenção, em busca de droga, e destruiu a entrada e as janelas da zona onde se localiza a casa das máquinas dos elevadores do edifício. “Até que ponto é que é preciso partir tudo? É que depois a câmara também não atua no arranjo das coisas”, partilha Paula Marques, vereadora independente da CML. João Raimundo explica que dificilmente os elevadores serão arranjados tão cedo. “Como partiram as janelas de acesso ao telhado a água entra para aqui, para os motores”. Só que este não é o único prédio onde não há elevadores a funcionar. “Isso é por todo o bairro”, lamenta este elemento da associação de moradores. 

Do alto dos edifícios voa a cobertura em azulejos. João Raimundo aponta para as paredes dos prédios e avisa que o caso irá repetir-se: “Veja a barriga que os azulejos fazem: Mais dia, menos dia, cai tudo cá para baixo. Há uns dias fui abrir a porta da associação e estavam os azulejos todos no chão”. Raimundo aponta, ainda, para o alto de um dos prédios. A cobertura da parede, “por sorte, não caiu. Os funcionários da Gebalis foram ao telhado, para o limpar, e detetaram que toda aquela placa estava solta. Isolaram-na, partiram e ficou assim. Temo que o resto da placa também esteja solta. Se aquilo cai e apanha uma criança, ou alguma pessoa que vá a passar, é um perigo muito grande. Só vai ser feita alguma coisa neste bairro quando houver uma desgraça”, adivinha João Raimundo. 

Iluminação pública não há, “apesar de os candeeiros não estarem partidos, portanto não há essa desculpa”, atira o homem, cansado de ver o bairro a degradar-se, cada vez mais, de dia para dia. Aponta para uma caixa de eletricidade, junto à praça central. “Já tiveram de vir cá os bombeiros duas vezes porque isto incendeia-se. Provavelmente será devido à entrada de humidade ou da água da chuva. Mas continua por arranjar”.

Ao lado do bairro situa-se a Estação de Tratamento de Águas Residuais, ETAR, de Chelas. “Temos aqui isto a céu aberto. Sobretudo quando o tempo aquece, o mau cheiro é impossível de aguentar e há muita bicharada”, lamenta este responsável. O solo está a abater. “Isso pode ver-se pelas juntas de dilatação dos prédios”, aponta, mais uma vez, Raimundo.

A CML assume que o bairro da Quinta do Lavrado apresenta “diversas patologias”. No entanto, o município garante que “foi feita, no atual mandato a monitorização do edificado pelos serviços da CML e da Gebalis, encontrando-se o mesmo estável, não apresentando problemas para a segurança dos moradores”.

A CML avança que “os edifícios vão ser reabilitados numa operação que irá iniciar-se neste ano de 2024, num investimento previsto de aproximadamente 5,2 milhões de euros”. As obras irão incidir, segundo o município, “nas coberturas, fachadas, terraços e revisão de redes técnicas”. Os elevadores também não ficam esquecidos. “Ao nível dos elevadores, a intervenção de reabilitação permitirá modernizar estes equipamentos e dotá-los de maior robustez ao dano, sendo que estes equipamentos são frequentemente alvo de má apropriação e vandalismo”. A Associação Geração com Futuro também terá direito a obras, dado que as instalações estão muito danificadas, com humidade e infiltrações de águas. O DN testemunhou, até, vários alguidares e baldes que amparam a água que provém do patamar superior. “As obras na Associação de Moradores serão realizadas depois da intervenção da primeira fase, que engloba zonas comuns dos edifícios: coberturas, fachadas, terraços, infraestruturas técnicas comuns, caminhos de circulação comuns, e a já referida monitorização dos elevadores”. De fora, talvez fique o tão desejado parque infantil que, outrora, já existiu na praça central do bairro. “Andamos em guerra, a ver se conseguimos pôr aqui, novamente, um parque infantil para as crianças. Respondem-nos que já houve um parque: houve, mas foi há 23 anos”, conclui João Raimundo.


Baratas invadem ruas e sobem paredes dos prédios


Continuamos o percurso pelos bairros mais degradados de Lisboa. A próxima paragem é na Alta de Lisboa, onde se situava a antiga Musgueira e as Galinheiras. Por ali, foram construídos vários bairros ao abrigo do PER. Gilberto Barros mora no PER 7, mesmo em frente à escola básica 2/3 Pintor Almada Negreiros. “Dentro dos prédios nunca foram feitas alterações, desde 2001. Estão a ganhar humidade, as portas estão estragadas e nunca houve uma intervenção para arranjar e reparar as coisas”, alerta. “Também há alguns elevadores que não funcionam”. E depois há o problema das pragas. “Reparo várias vezes, sobretudo à noite, nas baratas a espalharem-se pelas ruas do bairro e a subirem as paredes dos prédios. Acabam por entrar em algumas casas e depois é difícil acabar com elas, fazem ninhos”.

Mauro Wha, que dirige a Associação PER 11, acrescenta:“Há zonas onde também aparecem muitos ratos, por causa do lixo que se acumula”. E chama a atenção para as condições de vida, sobretudo dos mais idosos. “Por que é que há tanta gente idosa fechada em casa? Não há elevadores. Muitas vezes as pessoas têm de sair, para irem ao médico, ajudadas pelos bombeiros. São pessoas com pouca mobilidade e pouca saúde”. Mauro chama ainda a atenção para os problemas na rua. “As nossas calçadas, as ruas, têm problemas. Fazemos reclamações, ligamos para a CML, para a polícia municipal, mas são sempre processos muito lentos”. No caso das avarias nos elevadores, Mauro explica que “ou dizemos que são prédios onde moram idosos e, nesse caso, a Gebalis aparece para resolver o problema, ou se não for assim, nada acontece”. Tanto Gil como Mauro moravam em barracas, nas antigas Galinheiras. “Quando viemos para os prédios ficámos satisfeitos. Pensámos que íamos ter mais qualidade de vida. Só que à medida que os anos passam, sem haver reparações nos prédios, essa qualidade vai-se perdendo”.

Perigo de morte no corredor

A viagem termina no bairro Portugal Novo. O bairro foi construído nos anos 70, por uma cooperativa que, mais tarde, abriu falência. Ao abandono, tornou-se “terra de ninguém”, como nos diz Nuno Furtado, presidente da Associação de Moradores Paz, Amizade e Cores, Olaias, Portugal Novo. Certo é que os moradores foram ficando e este bairro nunca teve qualquer intervenção. Vê-se o esqueleto dos prédios, o gás canalizado já não é utilizado “porque é perigoso, dado que a canalização está muito velha”, não há luz nos patamares dos prédios e, ao fundo de alguns corredores há perigo de morte. “Isto eram os fossos dos elevadores, que nunca chegaram a ser colocados. Felizmente, nunca houve um acidente grave”, avança Nuno Furtado, ao mesmo tempo que nos aponta para um abismo com cerca de quatro metros de altura, ao fundo de um dos corredores do edificado.

O bairro está de tal modo degradado que poderá ir abaixo. “Foi feito pelo LNEC o diagnóstico do estado físico de conservação do edificado e procedeu-se ao recenseamento da população”, revela a CML. “Não está ainda decidido o que será reabilitado e o que será demolido”, informa a CML.


isabel.laranjo@dn.pt