Direita
10 abril 2024 às 07h17
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Passos Coelho agita PSD e Chega de olhos postos na corrida ao Palácio de Belém

Palavras do antigo primeiro-ministro para os partidos verem o “sinal muito claro” das legislativas foi aproveitado por André Ventura e criou embaraço no Governo de Montenegro. Além de alimentar “especulações” acerca das ambições presidenciais de Passos Coelho. “Não há coincidências”, diz Rui Gomes da Silva.

Seis anos após renunciar ao seu mandato de deputado, sem nunca mais ser eleito para qualquer cargo, o antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho agitou a direita com declarações vistas como um apelo ao seu partido para se entender com o Chega. E alimentaram especulações sobre a sua entrada na corrida às presidenciais de 2026.

“É fundamental olhar para as pessoas que ficaram desiludidas nestes anos e que deram um sinal muito claro, nas últimas eleições, de que estão cansadas. E é bom que todos aqueles que receberam um voto de confiança muito forte para pôr um fim a isto ponham realmente um fim e ofereçam às pessoas razões para acreditarem que vale a pena fazer um jogo diferente”, disse Passos Coelho na segunda-feira, ao apresentar o livro “Identidade e Família”, que junta textos de 22 autores conotados com a direita conservadora e que atacam o que descrevem como a “destruição da família tradicional”.

Entre muitas críticas à esquerda, com o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, a prometer combate a “um discurso de extrema-direita”, os sociais-democratas que contestam a estratégia “não é não” de Luís Montenegro, no que toca ao Chega, não tardaram a reagir. Para o ex-ministro Rui Gomes da Silva, co-autor do manifesto Portugal em Primeiro, que advoga o entendimento do PSD com o Chega para formar “uma maioria sólida” - depois de a Aliança Democrática só ter conseguido eleger 80 deputados -, o estatuto de Passos Coelho “permite-lhe que diga, com grande frontalidade, simplicidade e antecedência”, o que outros militantes têm dúvidas em expressar. Contra os “principais ideólogos do Governo”, que “precisam do voto ao centro para tentarem ser Presidente da República, o que nunca serão”, diz que mais facilmente será esse o destino de quem foi primeiro-ministro entre 2011 e 2015.

“Se ele quiser, pode sempre ser”, reforça Gomes da Silva, para quem “não há coincidências” no timing e teor das palavras de Passos Coelho, no que assume ser uma referência ao livro da “irmã [Margarida Rebelo Pinto] da senhora ministra do Trabalho”, Maria do Rosário Palma Ramalho, mãe da vice-presidente do PSD, Inês Palma Ramalho.

Apesar de sublinhar que está a fazer “mera especulação”, também o advogado e comentador José Miguel Júdice admite que uma das três explicações para a intervenção de Passos Coelho é a vontade de posicionar na sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa, até por ser “um candidato que o PSD dificilmente poderá recusar”. Mas pode estar a dar uma ajuda a Montenegro, “tentando convencer o Chega a moderar-se”, com vista à aprovação do Orçamento do Estado, ou precisamente o inverso, elevando a pressão sobre o novo primeiro-ministro. “A indefinição sobre os nossos objetivos é a nossa liberdade”, diz, citando Agustina Bessa-Luís.

Por seu lado, o ex-ministro Ângelo Correia diz que enveredar numa “guerra cultural que era inevitável”, com o foco na defesa da conceção tradicional de família, tem potencial para “arrastar contra a esquerda” o PSD e o Chega. E vê surgir um “núcleo fundamental cimentador da unidade da direita”, patente na forma como o primeiro Conselho de Ministros deste Governo reverteu o símbolo da República.

Quanto a Passos Coelho, muitas vezes visto como “liberal em demasia”, Ângelo Correia defende que se “deslocou para as guerras identitárias”. Um tema que deve suscitar “reflexão profunda” no PSD.

Alheamento e críticas no PSD

Certo é que entre os sociais-democratas alinhados com a liderança de Montenegro não houve vontade de dar protagonismo ao apelo de Passos Coelho, e muito menos ao livro “Identidade e Família”. Na Livraria Bucholz, em Lisboa, foram raros os sociais-democratas, com o deputado municipal portuense Miguel Corte Real (outro autor do manifesto Portugal em Primeiro) e o ex-líder da concelhia lisboeta, Paulo Ribeiro, a contrariarem a regra. Mas do CDS-PP estava o presidente, Nuno Melo, e os antecessores Manuel Monteiro e José Ribeiro e Castro, enquanto o Chega levou uma comitiva de peso: o líder André Ventura, Diogo Pacheco de Amorim e Rita Matias.

Ontem, com o apelo de Passos Coelho a dominar o debate público, era notório o desconforto no PSD. O ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, admitiu o “interesse mediático”, mas contrapôs ser “fundamental” discutir o programa de Governo. E o líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, acabado de ser eleito, disse que o antigo líder social-democrata “terá feito um apelo ao diálogo com todos os partidos”.

Frontalmente contra a abertura de Passos Coelho a teses conservadoras, o antigo vice-presidente do PSD, André Coelho Lima, recorreu ao Twitter para se demarcar “em absoluto de visões que, mais do que desajustadas temporalmente, são sobretudo desajustadas face à visão de sociedade que tenho e por que luto”, que o ex-deputado descreve como “inclusiva, integracionista, respeitadora das diferenças e, numa palavra, humanista”.

Enquanto militante e ex-dirigente do PSD, Coelho Lima deixou claro “que um partido que tem inscritos nos seus princípios o humanismo, o personalismo, a tolerância, o direito à diferença, a autodeterminação da pessoa humana e a igualdade de oportunidades, não se sente nem pode sentir representada por opiniões que andem absolutamente arredias destes princípios, que neste partido são fundacionais além de fundamentais”.

Aproveitamento de Ventura

Estudioso do fenómeno da direita radical, e do Chega em particular, o investigador universitário Riccardo Marchi diz ao DN que Passos Coelho lhe pareceu “desconfortável com a proximidade” de André Ventura no lançamento do livro “Identidade e Família”, no qual o líder partidário ouviu “um discurso mais próximo do Chega do que do atual PSD” e encontrou “um caminho de convergência” que “talvez permita um candidato presidencial”.

Marchi destaca a “capacidade de aproveitar estes momentos” demonstrada por Ventura, recordando a conferência do Movimento Europa e Liberdade, em 2021, quando o ainda deputado único do Chega se foi sentar ao lado do antigo primeiro-ministro, na primeira fila do auditório da Culturgest, concentrando as atenções dos repórteres fotográficos.

“Já naquela altura havia a necessidade de encontrar uma referência forte no PSD”, defende o investigador, para quem Ventura vê Passos Coelho como a melhor forma de contornar o “não é não” de Luís Montenegro.  Isto porque, embora esteja confortável na oposição ao que diz ser o bloco central dos interesses, “sabe que o eleitorado de um partido de direita radical é muito volátil”. E isso é problemático para quem deseja ser primeiro-ministro, seguindo o exemplo de governantes como a italiana Giorgia Meloni, ainda que os Irmãos de Itália sejam de uma família europeia diferente. “Desse ponto de vista, não se importaria que houvesse um candidato presidencial que não fosse ele, mas que garantisse uma boa relação”, diz Marchi, recordando que Passos Coelho “foi o único que não o deixou cair no PSD em 2017”, quando o ainda social-democrata era candidato à Câmara de Loures e viu o CDS-PP desistir da coligação devido aos seus ataques à comunidade cigana.

Muito próximo de Ventura nessa altura, e na fundação do Chega, o agora vereador independente da Câmara de Sintra, Nuno Afonso, acredita que a aproximação de Passos Coelho ao partido mais à direita na Assembleia da República é indissociável da ideia de que, com uma candidatura a Belém apoiada pelo PSD e pelo Chega, “pode ganhar a Costa ou a Guterres”. Algo que, em sua opinião, não colide com as ambições de André Ventura, que “quer ser primeiro-ministro primeiro, e conseguir mudar para um regime presidencialista”.