Mudança
27 abril 2024 às 09h45
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Fisioterapeutas querem integrar equipas de emergência e catástrofe, como recomenda OMS

Portugal é dos países onde a Fisioterapia não pode intervir em certos contextos. No entanto, o país é agora pioneiro nesta área ao criar uma pós-graduação com o aval da OMS. “É preciso mudar o paradigma”, defende Carla Gentil Homem, coordenadora da formação.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem vindo a recomendar aos fisioterapeutas que se preparem, de acordo com os percursos formativos dos seus países, para poderem integrar as equipas multidisciplinares que atuam em contextos de emergência, catástrofe e ação humanitária. No Reino Unido, Austrália e Países Baixos tal já é possível, em Portugal ainda não. Pelo contrário, “no nosso país ainda há uma noção e uma perspetiva que diminui a Fisioterapia no que é a sua ciência, a sua área de estudo e de intervenção”, explica Carla Gentil Homem, fisioterapeuta, diretora de um centro de atividade nesta área e coordenadora da primeira pós-graduação na Europa em Fisioterapia em Contexto de Emergência, Catástrofe e Ação Humanitária, defendendo mesmo: “É preciso mudar o paradigma.”

Uma mudança que ainda é mais importante agora, porque Portugal se tornou país pioneiro na formação com a primeira pós-graduação europeia nesta área - que está a ser ministrada desde o dia 11 de abril, terminando no final do ano, na Escola Superior de Saúde do Alcoitão (ESSAlcoitão), da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) - com o aval da OMS. Neste momento, integra 21 alunos, já tem lista de espera para o próximo ano e a própria OMS já lançou o desafio para que esta se multiplique por outros países.

Mas por que não muda o paradigma em Portugal? Carla Gentil explica: “Há uma grande dualidade no conceito de emergência médica, o de vida ou morte, o que faz com que só estejam presentes nestes contextos profissionais que são formados declaradamente para salvar vidas”. Mas a própria OMS “já contraria este conceito, demonstrando o quão errado e desatualizado está”, argumenta, exemplificando: “Na pandemia todos percebemos que não bastava salvar vidas, que não bastava ter um coração a bater para se salvar e recuperar uma vida. É um facto que os fisioterapeutas não usam uma prática invasiva, não intubam doentes, mas o movimento faz parte da vida e a Fisioterapia é a ciência especialista nesta área. E quanto mais precocemente intervirmos nos doentes que perdem a locomoção, seja por causa da covid-19, por um acidente de viação, um acidente vascular cerebral, uma cirurgia, paragem cardíaca ou por qualquer outra situação em que o movimento é interrompido, maior é a capacidade de sucesso de recuperação desse doente. E quando falamos em salvar vidas e em recuperação falamos na reintegração do doente na família, no trabalho e na sociedade”, sublinha a técnica de 52 anos, que diz ser fisioterapeuta por paixão e por vocação. “É a única profissão em que me vejo a trabalhar.”

Foi através desta paixão que decidiu investir na sua formação e avançar para a realização de um mestrado na ESSAlcoitão e escolher uma área para a sua tese, que tinha já identificado como uma falha a nível nacional, e que era precisamente, a integração de fisioterapeutas em equipas multidisciplinares.

Foram mais de dois anos e meio de trabalho em que “quis saber por que estava vedado a nossa intervenção na emergência médica, nas catástrofes e, consequentemente, na ação humanitária. O que poderia estar a faltar na formação académica dos fisioterapeutas era uma das questões, outra era perceber até que ponto fazia sentido investir nesta formação para que pudéssemos fazer parte destas realidades. E fomos fazer um estudo sobre o que se passava nos outros países: no final, percebemos que o que faz falta é um outro conceito sobre a Fisioterapia, como ciência autónoma e com competências próprias para ser uma profissão também autónoma.”

Aliás, é desta tese que sai a ideia de se passar à criação da pós-graduação já considerada pioneira. Mas, explica, “não se trata de querermos trabalhar sozinhos, nem de substituir nenhum outro profissional, o que queremos é autonomia na nossa prática e ser parte integrante das equipas multidisciplinares, porque temos um contributo a dar que tem vindo a ser evidenciado e demonstrado pela própria OMS”.

Por exemplo, “neste momento, já não se ouve falar de covid-19, mas os fisioterapeutas continuam a trabalhar diariamente com estes doentes, dado o impacto das sequelas”. Só por isto “o fisioterapeuta deveria ter lugar na situação emergente, porque pode identificar situações e propor intervenções”.

Outro contributo que Carla Gentil Homem destaca como evidente é na área do Desporto. “Já se percebeu que é extremamente importante o contributo do fisioterapeuta na melhoria da performance de um atleta, quer seja pela diminuição de lesões ou pela recuperação precoce destas”, dizendo mesmo, em tom de brincadeira: “O Cristiano Ronaldo não vai de férias sem o seu fisioterapeuta. E no Reino Unido, quando um jogador de futebol vai ao chão o primeiro a entrar no relvado é o fisioterapeuta”, afirma.

Em Portugal, ainda não é assim, no Desporto, nas unidades de saúde, ou nos Serviços de Urgência, o que para Carla Gentil Homem “teria muitas vantagens e menos custos na recuperação dos doentes e para o sistema. Podíamos estar a apoiar a área da Ortopedia, por exemplo”. Mas não só.

“Quantas vezes nos centros em que trabalho recebemos telefonemas de familiares de doentes vítimas de AVC a dizer que este vai ter alta e que precisa de cuidados de fisioterapia. E nós temos de explicar que primeiro tem de ir ao médico de família, pedir uma credencial, depois a uma consulta de Fisiatria no hospital e só depois chega aos cuidados de fisioterapia. Quando o doente começa a fazer a sua recuperação já perdemos muito tempo e isto tem os seus custos para o doente e para o sistema.”

Carla Gentil diz ao DN que há cerca de 13 mil profissionais inscritos na Ordem dos Fisioterapeutas, mas, destes, só 1200 estão no Serviço Nacional de Saúde e isto “também deveria mudar para o bem dos doentes e para a redução de custos e de tempos de espera no acesso a cuidados de saúde”.
A técnica, que diz que nunca irá desistir desta sua paixão, reconhece que “a Fisioterapia é uma profissão recente, a nossa ordem existe apenas desde 2019. Até aqui era preciso regulamentar a profissão para que ficasse bem definido o ato do fisioterapeuta, mas os passos seguintes têm de ser no sentido de defender a profissão junto de quem de direito e de nos fazermos ouvir como um contributo positivo para a melhoria das condições de saúde”.

anamafaldainacio@dn.pt