Challenger
25 abril 2024 às 08h41
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A vida numa partida de ténis

Com Challengers, Luca Guadagnino regressa literalmenteà boa forma, colocando Zendaya no centro de uma comédia dramática que produz uma sensação de ida ao ginásio... Eis um triângulo amoroso por entre raquetes e bolas de ténis.

Uma pequena brincadeira: quando se juntam as palavras “ténis” e “cinema”, que imagem vem à cabeça? A mim ocorre-me Jacques Tati e a sua coreografia peculiar em As Férias do Sr. Hulot (1953). Mas a partir de agora essa memória visual poderá passar a vir acompanhada, por contraste, de qualquer cena em campo de Challengers, um filme enganosamente sobre o desporto em causa, que imerge na tensão competitiva para falar das relações e do “jogo da vida”. Por outras palavras, Luca Guadagnino está de parabéns. Depois de Ossos e Tudo, o conto canibalesco que não passou de um golpe de criatividade insípida, na sua tentativa de evocar um certo romantismo indie, Challengers funciona como um autêntico contraponto enérgico e vital, que mantém o estudo das relações amorosas dentro do registo sedutor de outras obras do realizador italiano, como Mergulho Profundo e Chama-me Pelo Teu Nome.  

Dito isto, Challengers vem provar, antes de mais, que Guadagnino é um crente nos atores - basta pensar no que lhe deve o jovem Timothée Chalamet, que nunca mais foi uma criatura tão sensível na tela como naquele verão na Lombardia de Call Me By Your Name (enfim, pode-se sempre assinalar a exceção de Um Dia em Nova Iorque, de Woody Allen). O mesmo tipo de revelação acontece, desta feita, com Zendaya, que sendo uma atriz já bem lançada no panorama, não tinha ainda conseguido deixar a marca indelével de uma interpretação cinematográfica capaz de dominar e extasiar um filme do princípio ao fim. 

É o que acontece neste Challengers, que praticamente começa e acaba no rosto dela, com uma câmara dinâmica a querer saber o que esconde o seu olhar vedado pelos óculos de sol. Sentada a assistir a uma partida de ténis, ela é o terceiro vértice de um triângulo formado com os jogadores em campo: o filme vai nascer dessa disposição geométrica, contando uma história a partir dos movimentos e som agressivo da bola a bater na raquete, e assumindo na configuração temporal o próprio vai-e-vem da esfera amarela.  

O amor a três

Aqui, Zendaya é Tashi Duncan, em tempos um fenómeno do ténis, que sofreu uma lesão grave, ficando impedida de prosseguir a carreira de sonho correspondente ao seu talento. Animal feroz em campo, ela acabou por transferir essa garra para o papel de treinadora do marido, Art (Mike Faist), que no momento em que o conhecemos está a passar por uma fase complicada de derrotas, pouco condizente com o seu nível profissional. Numa busca obstinada para lhe dar algum estímulo, Tashi lança um novo desafio: ele deverá participar num torneio Challengers, onde tem mais hipóteses de voltar a saborear a vitória... Isto antes de saber que vai ter Patrick (Josh O’Connor) como rival do outro lado da rede, um amigo de longa data e ex-namorado de Tashi, que entretanto já não é amigo, e também não está a atravessar melhores dias (não tem dinheiro para pagar sequer um quarto de motel). 

Estas linhas gerais do presente, que se desenham em torno da principal partida de ténis do filme, chegam à compreensão do espectador através de um dispositivo de recuos e avanços no tempo concebido para narrar o perfil das personagens - desde que se conhecem em adolescentes até à vida adulta -, mas também para entrelaçar as leis do desejo com a vibração competitiva do desporto. Tudo servido por um gesto tónico de realização, em que o trabalho de câmara e a banda sonora techno de Trent Reznor & Atticus Ross se conjugam num verdadeiro projeto de estilo. Não é por acaso que Challengers é o filme mais sexy de Guadagnino, sempre a puxar pelo “efeito Zendaya”, a sublinhar a intensidade física do ténis (que remete para outro tipo de intensidade) e a criar uma experiência ágil e revigorante. O equivalente a uma aula de ginásio. 

Claro que neste triângulo amoroso o desejo não é apenas direcionado à personagem feminina de Zendaya, o que realça a assinatura queer de Guadagnino. Mas dir-se-ia que a essência luminosa de Challengers, a sua nota de inteligência cómico-dramática, parte do argumento original de Justin Kuritzkes, um debutante que por acaso é marido de Celine Song, realizadora do badalado drama semiautobiográfico Vidas Passadas. Esse, por sinal, igualmente centrado num triângulo amoroso, que vai de Seul a Nova Iorque, sendo o namorado americano uma reminiscência do próprio Kuritzkes...  

Escusado será salientar que Challengers não oferece qualquer outra analogia com o delicado Vidas Passadas. O filme de Luca Guadagnino é uma bebida energética, um objeto atravessado por eletricidade, que procura a acústica perfeita da pancada forte da raquete na bola, dando tudo, mesmo tudo - à semelhança da sua protagonista - pelo espetáculo de uma boa partida de ténis. Às vezes, parece um pouco excessivo, mas este não deixa de ser o estilo adequado à voltagem sexual segundo Guadagnino. E Zendaya, não tenhamos dúvidas, é uma potência absoluta no ecrã: mérito também de um realizador que soube dar-lhe a pincelada certa de coolness e malícia.