Exclusivo The New York Times
02 março 2024 às 00h54
Leitura: 10 min

Como o vinho tinto deixou de ser considerado saudável

Por uma ou duas décadas gloriosas, a bebida foi elogiada como sendo boa para o coração. O que aconteceu?

Num episódio de 1991 do programa 60 Minutes, o jornalista Morley Safer, da CBS, questionou como era possível que os franceses apreciassem alimentos com um elevado teor de gordura, como paté, manteiga e queijo brie, e, no entanto, apresentassem taxas de doenças cardíacas mais baixas do que os americanos.

“A explicação para o paradoxo poderá residir neste copo apelativo”, afirmou Safer, erguendo um copo de vinho tinto perante os espectadores.

Os médicos acreditavam que o vinho tinha “um efeito de limpeza” que impedia as células formadoras de coágulos sanguíneos de se agarrarem às paredes das artérias, afirmou Safer. De acordo com um investigador francês que foi apresentado no episódio, este hábito poderia reduzir o risco de obstruções arteriais e, por conseguinte, de ataques cardíacos.

Na altura, vários estudos apoiaram esta ideia, afirmou Tim Stockwell, um epidemiologista do Canadian Institute for Substance Use Research. Além disso, os investigadores chegaram ao consenso de que a dieta mediterrânica, que incentiva o consumo de um ou dois copos de vinho tinto às refeições, comporta benefícios cardíacos, acrescentou.

Todavia, só após o episódio do programa 60 Minutes é que a noção de que o vinho tinto é uma bebida virtuosa saudável se tornou “viral”, afirmou. Um ano após a transmissão do programa, as vendas de vinho tinto nos Estados Unidos aumentaram 40%.

Levaria décadas até que a fama do vinho como bebida saudável se dissipasse.

A evolução da nossa perceção sobre o álcool e a saúde

A possibilidade de um copo ou dois de vinho tinto poderem ser benéficos para o coração foi “uma ideia agradável” que os investigadores “adotaram”, afirmou Stockwell. Esta noção ia ao encontro de um conjunto de provas, reunidas nos anos 90, que associavam o álcool à saúde.

Por exemplo, num estudo de 1997 que acompanhou 490 mil adultos nos Estados Unidos durante nove anos, os investigadores descobriram que aqueles que afirmaram consumir, pelo menos, uma bebida alcoólica por dia apresentavam uma probabilidade 30% a 40% menor de morte por doença cardiovascular do que aqueles que não consumiam álcool. Este grupo consumidor também apresentava uma probabilidade cerca de 20% inferior de morte por qualquer outra causa.

Até ao ano 2000, centenas de estudos chegaram a conclusões semelhantes, afirmou Stockwell. “Julguei que esta teoria estava consolidada”, afirmou.

Contudo, desde os anos 80 que alguns investigadores têm vindo a apontar problemas a este tipo de estudos e a questionar se o álcool seria ou não responsável pelos benefícios observados.

Talvez as pessoas que consumiam bebidas alcoólicas de forma moderada fossem mais saudáveis do que as que não consumiam álcool de todo porque tinham mais probabilidades de serem pessoas instruídas, abastadas e fisicamente ativas, e mais probabilidades de terem um seguro de saúde e de comerem mais legumes, afirmaram. Ou talvez porque a maioria das pessoas abrangidas pelos estudos que não consumiam álcool eram, na realidade, pessoas que tinham deixado de beber por terem desenvolvido problemas de saúde, acrescentaram.

Kaye Middleton Fillmore, investigadora na Universidade da Califórnia, em São Francisco, foi uma das pessoas que apelou a um maior escrutínio da investigação.

“É da responsabilidade da comunidade científica avaliar cuidadosamente estas provas”, escreveu num editorial publicado em 2000.

Em 2001, Fillmore persuadiu Stockwell e outros cientistas para a ajudarem a reanalisar os estudos precedentes sobre o tema de forma a averiguar algumas destas tendenciosidades.

“Colaborarei consigo neste projeto”, recorda-se Stockwell de ter dito a Fillmore, que faleceu em 2013. Mas “eu estava bastante cético em relação a toda a ideia”, afirmou este.

Na sua nova análise, os benefícios resultantes do consumo moderado de álcool, observados anteriormente, tinham desaparecido. As suas descobertas, publicadas em 2006, fizeram manchetes por contradizerem a teoria dominante: “Study Puts a Cork in Belief That a Little Wine Helps the Heart” (Estudo põe um fim à crença de que um pouco de vinho beneficia o coração), publicou o Los Angeles Times.

“Foi uma notícia que perturbou muitas pessoas”, afirmou Stockwell. “A indústria do álcool tomou grandes medidas e gastou imenso dinheiro para contrapor a mensagem inoportuna que estava a ser divulgada”. No espaço de meses, um grupo financiado pela indústria organizou um simpósio para debater a investigação e convidou Fillmore.

Nos apontamentos que Stockwell guardou, Fillmore referiu que o debate foi “intenso e pesado, de tal forma que senti que tinha de descalçar o sapato e bater com ele na mesa”.

Quando dois dos organizadores da conferência publicaram um resumo do simpósio que afirmava que “o consenso a que se chegou na conferência” era que o consumo moderado de álcool estava associado a uma melhoria da saúde, Stockwell afirmou que Fillmore “ficou furiosa” pelo facto de as suas convicções não terem sido representadas.

Desde então, muitos outros estudos, incluindo o publicado por Stockwell e seus colegas em 2023, vieram confirmar que o álcool não é a bebida saudável que em tempos se acreditou ser.

Em 2022, os investigadores comunicaram notícias ainda mais preocupantes: o consumo de álcool não só não tinha benefícios cardiovasculares, como podia inclusive aumentar o risco de problemas cardíacos, afirmou a Dra. Leslie Cho, cardiologista da Cleveland Clinic.

Atualmente, há cada vez mais estudos que demonstram que mesmo uma única bebida alcoólica por dia pode aumentar as probabilidades de desenvolver doenças como a hipertensão arterial e a arritmia que, por sua vez, podem levar a um acidente vascular cerebral, insuficiência cardíaca congestiva ou outras consequências para a saúde, afirmou.

Além disso, a relação entre o álcool e o cancro é evidente – algo que a Organização Mundial da Saúde tem vindo a afirmar desde 1988.

Esta é uma mensagem bastante distinta da que os doentes poderão ter ouvido por parte dos seus médicos durante alguns anos, reconheceu Cho. No entanto, o entendimento deste tema mudou.

A OMS e outras agências de saúde afirmam que nenhuma quantidade de álcool é saudável, quer se trate de vinho, cerveja ou destilados.

Então, o consumo de vinho está fora de questão?

Jennifer L. Hay, cientista comportamental e psicóloga da saúde no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova Iorque, afirmou que, nas consultas de aconselhamento com pacientes oncológicos, muitos ficam “completamente chocados” ao saber que o álcool, incluindo o vinho, é cancerígeno.

Num estudo realizado em 2023, os investigadores inquiriram cerca de 4000 adultos norte-americanos e descobriram que apenas 20% conheciam os efeitos cancerígenos do vinho, em comparação com os 25% que conheciam os efeitos cancerígenos da cerveja e os 31% que conheciam os efeitos cancerígenos dos destilados.

Os doentes cardíacos de Cho mostram-se frequentemente surpreendidos quando esta sugere a redução do consumo de álcool, incluindo o vinho.

“Ficam do género: O quê? Eu achava que o consumo de vinho protegia contra as doenças cardíacas”, afirmou.
O vinho tinto contém, de facto, componentes chamados polifenóis, podendo alguns destes apresentar propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias. Contudo, nenhum estudo, apesar das décadas de investigação sobre um polifenol chamado resveratrol, estabeleceu uma relação definitiva entre a quantidade de polifenóis obtidos a partir do vinho tinto e a boa saúde, afirmou Cho. Além disso, não existem provas concretas de que o vinho é menos prejudicial do que outros tipos de álcool, acrescentou.

“É algo que pode ser muito difícil de ouvir”, reconheceu Hay. Sempre que conta às pessoas que estuda os riscos do álcool, “instala-se um clima pesado na sala”, afirmou. “É algo que pode ser muito difícil de ouvir”, reconheceu Hay. Sempre que conta às pessoas que estuda os riscos do álcool, “instala-se um clima pesado na sala”, afirmou.

Hay e outros investigadores não estão a propor a “proibição” do álcool. Hay apenas pretende que as pessoas estejam informadas sobre os riscos associados ao seu consumo. Para a maioria das pessoas, não há qualquer problema em desfrutar de um copo de vinho de vez em quando, afirmou Cho.

Porém, não é benéfico para o coração, afirmou. “Está na altura de abandonar essa crença”.

Este artigo foi publicado originalmente em The New York Times.
c.2024 The New York Times Company

Tópicos: vinho, Saúde