Argentina
24 abril 2024 às 00h23
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O que se esconde atrás do “milagre económico” de Milei e irá durar?

Presidente anunciou superavit financeiro no primeiro trimestre do ano, algo inédito desde 2008. Mas foi alcançado à custa dos pensionistas, das obras públicas e subsídios.

O presidente argentino, Javier Milei, fala num “milagre económico”, que permite que o país tenha, pela primeira vez desde 2008, um superavit financeiro. O libertário, que chegou à Casa Rosada em dezembro, prometeu reduzir o défice e está a cumprir. A questão é saber a que preço - passa pela perda de rendimento dos pensionistas, o corte total nas obras públicas e o fim de subsídios à energia, por exemplo - e saber se vai durar.

“Entendo que a situação que estamos a viver é dura. Já percorremos metade do caminho. Desta vez o esforço vai valer a pena”, afirmou Milei, confiante, durante a sua declaração televisiva de 16 minutos, que passou no horário nobre de segunda-feira. “Contra os prognósticos da maioria dos dirigentes políticos, os economistas profissionais, televisivos e aldrabões de tribuna, os jornalistas especializados e boa parte do establishment argentino quero anunciar que o setor público nacional registou um superavit financeiro de mais de 275 mil milhões de pesos. É 0,2% do PIB durante o primeiro trimestre do ano”, revelou, dizendo que é um cenário inédito desde 2008. 

O presidente, ao lado do ministro da Economia, Luis Caputo, e do governador do Banco Central, Santiago Bausili, lembrou que “o défice zero não é só um slogan de marketing” para o seu Governo, mas um “mandamento”. E que este primeiro superavit “não é mais do que o ponto de partida para terminar com o inferno inflacionista” que herdou do anterior executivo. 

Milei atribuiu-se “um feito de classe mundial” que prova que “tinha razão” ao querer usar a “motosserra” para fazer face à crise que deixou “60% da população na pobreza”. Os dados oficiais apontam para 48%, havendo quem esteja a ler no número do presidente a expectativa que a situação vá piorar.

O superavit surge quando o Estado gasta menos dinheiro do que angaria ao longo de um determinado período de tempo. É o oposto do défice, que Milei considera “a causa de todos os males na Argentina”, fruto de uma “obsessão” dos políticos em “gastar o que não temos”. O resultado, lembrou, uma vez esgotadas as fontes de endividamento e os aumentos de impostos, era emitir mais moeda - e assim aumentar a inflação. Esta tem estado em queda, tendo sido de 11% em março, menos dez pontos do que em janeiro, quando foi de 20,6%. Ainda está elevada, cerca de 70% na comparação anual, mas está a baixar mais rápido do que o próprio Fundo Monetário Internacional tinha previsto.

Os números positivos de Milei surgem às custas do investimento público, com um corte nas obras públicas e nas transferência de fundos federais para as províncias argentinas (cerca de 62% em relação ao mesmo período do ano passado). Por outro lado, também houve uma redução do valor real das pensões devido à inflação, assim como dos salários e dos planos sociais, tendo também sido retirados vários subsídios (menos 67% nos subsídios sobre energia ou 32% do orçamento universitário). 

A Confederação Geral do Trabalho (CGT), sindicato argentino, denunciou a “liquidação dos rendimentos dos reformados”, com uma queda de 40% no espaço de um ano. As pensões (à exceção das mais baixas para evitar que ficassem abaixo do nível de pobreza) só subiram 27%, muito abaixo do valor da inflação.

A CGT falou também do desinvestimento nas universidades públicas, algo que levou milhares ontem às ruas. Ao não ser atualizado o orçamento para as universidades, há algumas “que não poderão funcionar no segundo semestre”, alegam. O problema de Milei com as universidades públicas vai mais longe, acusando-as de “doutrinamento político”, com os críticos a denunciar tentativas de “mostrar as universidades como centro da corrupção”.

A dúvida é saber se Milei conseguirá manter os resultados positivos. Na semana passada, num discurso diante de empresários em Bariloche, o presidente deixou o desafio: “Rapazes, em algum momento vão ter que ter coragem e investir”. A Argentina celebra a queda do risco-país quase para metade do que era em novembro, um indicador do aumento do grau de confiança dos mercados, assim como à recomposição das reservas do Banco Central. Mas há problemas, porque com o aumento dos custos e a queda nas vendas, há empresas que estão a despedir funcionários e investir não está nos seus planos.

Sobre se o superavit vai durar, o jornal argentino La Nación escrevia ontem que os otimistas acreditam que sim, lembrando contudo que há também aqueles que defendem que é “insustentável” para o funcionamento do Estado “cortar tudo, fechar a caixa e sentar-se em cima”. E a dúvida é saber até quando Milei vai contar com o apoio popular (50% já lhe dão nota negativa nas sondagens). 

Entretanto, ativistas da luta pela defesa dos Direitos Humanos, incluindo o prémio Nobel da Paz de 1980 Adolfo Pérez Esquivel, apresentaram no Congresso argentino uma petição a pedir o “julgamento político” de Milei por “mau desempenho das suas funções e possíveis crimes”. Acusam o presidente de “genocídio económico” que afeta cada vez mais argentinos.

susana.f.salvador@dn.pt