Portugal há 50 anos
19 abril 2024 às 00h20
Atualizado em 16 abril 2024 às 00h14
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Onde eu estava por... Paulo de Carvalho

Paulo de Carvalho nasceu em maio de 1947, em Lisboa. Cantor, músico e compositor, deu voz a uma das senhas da revolução - E depois do Adeus.

Redação

Em abril de 1974 estava a viver uma fase feliz. Tinha acabado de vencer com E depois do Adeus (letra de José Niza e música de José Calvário) o Festival da Canção, evento que teve lugar no dia 7 de março, no Teatro Maria Matos, em Lisboa.

Vencer o Festival significava uma boa dose de reconhecimento e muitos concertos garantidos. Preparava-me assim para um verão cheio. 

Não que até então fosse um desconhecido. A música era há muito uma das minhas paixões. Em 1963, fora um dos fundadores dos Sheiks, uma banda de rock onde era baterista. Chamavam-nos os Beatles portugueses. Esse projeto de amigos seria interrompido pela minha chamada à tropa (três anos por Espinho, Lisboa e Figueira da Foz, na especialidade de transmissões de infantaria).  Mas em 1970, regressara à música e a uma carreira a solo, a convite de Pedro Osório, com Corre Nina.  Até lá, não me apercebera da minha voz, confirmada em 1971 com um segundo lugar de Flor sem Tempo. 

Porém, não sendo um desconhecido, E depois do Adeus deu um rumo definitivo à minha carreira. Inclusivamente, a nível económico.

Em abril de 1974 vivia numa casa alugada na avenida de Roma, zona bem de uma cidade muito bonita, mais bonita do que é hoje. Solteiro, levantava-me muito tarde, e as tardes eram passadas no Vavá, café icónico das Avenidas Novas, onde paravam grandes nomes da música, do cinema e da cultura daqueles anos. 


Fazia uma vida normal, andava na rua sem disfarces porque as pessoas abordavam-me educadamente. Jantava todos os dias fora (uma senhora limpava a casa duas vezes por semana) e ainda sem carro - comprei o primeiro, um Honda 600, em 1976 -, tinha dinheiro para andar de táxis todos os dias. E para vestir por medida, sempre fatos completos, sempre com sapato de pala, que uso até hoje. 
No meio artístico, as pessoas eram mais coloridas. Mas, em geral, os lisboetas vestiam-se de forma descuidada e cinzenta. Quando com os Sheiks passei um mês em Paris, pude perceber o quanto estávamos longe de uma cidade a sério. Basta dizer que quando alguém da TAP trazia um disco de fora era uma festa. Ouvíamos até se gastar o disco. 

Não gostava de dançar nem beber álcool. Apenas sumo de laranja, natural ou Larangina C, mas as noites eram regadas a whisky e sim, consumia-se drogas, outra coisa que nunca fiz, ainda que muita gente não acredite. 

Em contrapartida namorava muito. Não com a liberdade de hoje, mas as raparigas tinham já alguma autodeterminação, sobretudo no meio que eu frequentava.  Por exemplo, a minha namorada de então, Teresa Sacchetti, tinha liberdade para chegar tarde ou até mesmo para ficar fora de casa, talvez um caso particular por ser filha de uma mulher como era Rosa Lobato Faria. 

A fama nunca me impressionou. O meu interesse era a música. Nunca tirei partido de ser conhecido. Se tivesse tirado, poderia estar rico.

Nasci na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, numa família remediada. A minha mãe era doméstica e o meu pai, barman em barcos de passageiros e carga, vinha a casa duas vezes por ano - no verão e no Natal. Estudei na escola comercial à noite, depois de ter feito os primeiros anos na Eugénio dos Santos, em Alvalade. Fui paquete numa companhia de seguros. Quanto à fama, era a possível numa altura sem redes sociais. Havia as revistas Plateia e a Flama

Na noite do 24 de abril, estava à porta do Vavá com um amigo, no carro dele, a conversar. Cerca das duas da manhã fui para casa. À hora de almoço do dia seguinte, a Teresa passou lá em casa. Disse-me que havia um golpe de estado. “Para melhor ou para pior”, perguntei. Ainda não se sabia. De qualquer maneira fomos de imediato para a rua. 

Só mais tarde percebi que E Depois do Adeus fora uma das senhas da revolução. A outra, Grândola Vila Morena. Precisamente onde vou estar, com o meu filho, a celebrar em palco, de 24 para 25, os 50 anos desse dia magnífico. 
 
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Telles