50 anos do 25 de abril
24 abril 2024 às 00h30
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Onde eu estava... por Vasco Lourenço

Nasceu em junho de 1942, em Lousa, Castelo Branco. Impulsionador do Movimento das Forças Armadas, foi preso nas vésperas do golpe militar e transferido compulsivamente para Ponta Delgada. É presidente da Associação 25 de Abril.

O meu Datsun branco 1200 fez para cima de 30 mil quilómetros nos oito meses de conspiração que levaram à Revolução de Abril. Como responsável operacional, competia-me ter tudo sob controlo. A estrutura militar desconfiava, o meu telefone estava sob escuta, mas as reuniões sucediam-se até altas horas da noite, muitas delas em nossa casa.

Casei-me com a Adélia a 29 de setembro de 1973. Em plena conspiração. A minha mulher, professora do Ensino Primário, não fazia perguntas. Na nossa sala, os capitães conspiradores, embalados num ou noutro whisky e, sobretudo, em muitos cigarros, traçavam planos. Pouco dado a álcool, era capaz de consumir dois maços por dia de SG Gigante. A minha sorte era não travar o fumo.

Morávamos no Estoril, casa alugada a major amigo que estava em Moçambique, na guerra. Pagávamos uma renda de 2000 escudos, salvo erro. A conspiração tirava-me todo o tempo - para trás ficavam os jogos de bridge, hábito diário em que cheguei a ser Vice-Campeão Nacional por equipas. Foram meses vividos intensamente, com os oficiais unidos por uma enorme confiança e lealdade. Era importante que as unidades com missões saíssem na hora H. Nem uma podia falhar.

Sou um otimista, tenho uma boa dose de autoconfiança, nunca me encolhi e sempre pensei que se alguém é capaz de fazer, então também sou. Mas, estava preparado para assumir as responsabilidades, caso corresse mal.

Nas vésperas da revolução fui preso. A 15 de março transferiram-me compulsivamente para Ponta Delgada, nos Açores. Os únicos momentos bons ali passados foram os poucos dias da visita da minha mulher, na Páscoa. Uma pequena amostra da lua de mel que não chegámos a ter.

Não era a primeira vez que estávamos separados. Entre 1969 e 1971 cumpri uma Comissão de Serviço na Guiné. Consegui montar um estúdio de fotografia e das fotografias que tirava fazia postais que escrevia à minha futura mulher. Postais de amor.

D.R. / Vasco Lourenço

Guiné era a guerra das guerras. Ali passei por situações muito complicadas em combate. Ataques ao quartel, emboscadas. Fui capaz de ultrapassar as situações e de me portar bem. Não tive baixas do pessoal que foi comigo de Portugal. Mas perdi alguns guineenses que combatiam ao nosso lado. Como é que uma pessoa se coloca numa situação em que é morta pelos dele? A pergunta tinha uma só resposta: estava ali a mais. Regressei determinado: não voltaria à guerra. Pediria para sair, desertaria. Ou, então, aproveitava a oportunidade para correr com os ditadores.

 No dia 25 de Abril estava nos Açores. Quando a minha mulher chegou ao Colégio em Oeiras onde então lecionava, e para onde eu costumava telefonar, tentando fugir às escutas, uma colega recebeu-a de braços abertos. “Desta vez é que o Vasco vem”, disse-lhe. “Telefonou, foi?”, respondeu a minha mulher sem suspeitar que estava a revolução na rua.

A minha filha Gabriela nasceria já em liberdade. Cresceu a ouvir os relatos da grande aventura. É uma mulher de Abril. O meu neto, de 15 anos, já passou a fase em que conversava muito comigo, mas sei que continua a sentir orgulho no avô.

O orgulho que os meus pais teriam. Eram comerciantes numa aldeia de Castelo Branco. Vendiam de tudo, sobretudo azeite, que o meu pai mandava fazer em lagar próprio. Em adolescente, não havia destino que eu desejasse verdadeiramente. Os meus pais queriam-me padre, médico ou engenheiro. Recusei. Gostava de atividade física, tinha tendência para a liderança, gostava de comandar. Agradava-me a camaradagem e a noção de lealdade implícitas na vida militar.

Ingressei na Academia Militar em 1960, tinha 18 anos. Fui Campeão Universitário em futebol e Vice-Campeão em atletismo (100 e 200 metros). No final do 1.º ano, porém, fiz um opúsculo onde expus alguns dos ideais de um jovem desiludido. Longe de imaginar o quanto iria realizar-me como militar e pessoa por ter participado na Revolução de Abril.


Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles