Primavera, 1974. Pousada num dos socalcos do Douro, havia uma pequena aldeia chamada Fontelo. Dois quilómetros separavam a minha casa do centro. Morávamos numa moradia empedrada, de traça modesta, com três assoalhadas. Éramos seis irmãos: três raparigas e três rapazes. Eu era a mais velha. A cuidadora. No rés-do-chão, moravam o porco e os coelhos. No primeiro andar, os ratos eram visitantes assíduos e à noite faziam-nos cócegas nos pés.
Os meus pais eram feitores numa quinta ladeada por vinhas. O meu pai não sabia ler nem escrever. A minha mãe era uma autodidata. Eu frequentava a escola primária, até à qual caminhava diariamente pelo caminho de terra no verão e desbravando a neve no inverno. Apesar das reguadas e dos castigos constantes, a escola era o que mais me entusiasmava: aprender era uma bênção. Aos 11 anos, inscrevi-me na biblioteca itinerante - de aldeia em aldeia, uma carrinha repleta de livros levava sonhos aos meninos do campo. As minhas leituras eram feitas às escondidas - quem é bom para ler, não é bom para trabalhar. Se encontrados, os livros eram destinados à lareira - afinal tinham uma utilidade.
A refeição completa do dia era ao almoço. À noite, uma sopa de couve aconchegava o estômago. Uma vez por mês, era preciso trocar a bilha do gás, carregada na cabeça até casa. Semanalmente, a roupa era lavada no lavadouro público. Os banhos eram tomados, uma vez por semana, numa bacia com sabão azul e branco - não havia casa-de-banho. A água era aquecida no pote, na lareira. Carne, só ao domingo - dia de missa e de vestir bem. As roupas eram dadas e passavam de irmãos para irmãos. Eram remendadas vezes sem conta pelas prendadas mãos da minha mãe, que se empenhava na sua renovação. Ir à igreja era obrigatório, um passeio semanal rumo à casa de Deus: a mesma pedra da minha casa, dimensões diferentes.
A rua era o nosso recreio, porque a casa não era lugar de brincadeira - não havia espaço. A brincadeira era rara; as lides domésticas sobrepunham-se. A educação era rígida, austera. As regras eram para cumprir ou a punição era severa. Não havia tempo a perder nem tempo perdido.
As maleitas eram curadas em casa, com as mezinhas e os xaropes caseiros. A primeira ida ao médico foi precisamente com onze anos: 6km até ao posto para curar um olho inchado, sem razão aparente. Nascemos todos em casa, pelas mãos da minha avó: a parteira não oficial da aldeia.
O rádio ouvia-se diariamente. Os discos pedidos e a radionovela eram os programas preferidos. A televisão ainda era uma miragem. As notícias eram ouvidas atentamente porque os meus tios estavam todos no Ultramar. A minha avó chorava copiosamente - o medo de perder as suas crias era uma realidade iminente.
Viviam-se tempos muito difíceis e a primavera que tanto esperávamos tardava em chegar. Até que um dia, na escuridão da noite, Paulo de Carvalho cantou a sua música de sempre E Depois do Adeus. Mas, desta vez, a primavera tinha finalmente chegado.