Reportagem
25 abril 2024 às 09h30
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“Não se consegue viver sem liberdade, só sobreviver”

Histórias da resistência antifascista contadas a jovens por quem as viveu. Muitas perguntas, muita atenção às respostas. Cinquenta anos separam os oradores da audiência. Duas gerações, mundos distantes, mas uma palavra comum: liberdade.

Com que idade foram presos? Sofreu maus-tratos? Como eram as condições nas prisões? O que sentiram os seus pais quando foi preso? Se soubesse que ia ser preso, teria continuado? Houve um momento pior do que outros? Como era o tribunal em que foi julgado? As mulheres também eram presas? Aperceberam-se de que ia acontecer uma revolta? No 25 de Abril, qual foi a primeira coisa que fizeram? E o que sentiram? Soltaram os presos todos ou só os políticos? Salazar fez alguma coisa boa pelo país? 

Os alunos do 9.º e do 12.º anos da Escola Secundária da Ramada quiseram saber como era viver há meio século. Ao longo de três horas, divididas em duas sessões, ouviram, atentos, testemunhos da resistência na voz de quem a viveu: Eduardo Brissos, Humberto Moreira, José Tavares Marcelino e Manuel Glória, da União de Resistentes Antifascistas Portugueses.

“Acabou? Estava a gostar tanto”, dizia-se no final. Já em tempo de descontos, ainda dois braços no ar: “Havia tráfico de droga nas prisões?”, quis saber um aluno. “É verdade que Salazar punha o Benfica a ganhar campeonatos?”, questionou outro. A pergunta agitaria a sala e teria resposta imediata: “Não acreditem nisso. Pensem só que era um regime que proibia o Eusébio de deixar o país.” 

Alheia à rivalidade futebolista, uma aluna insistia na descrição das celas da prisão de Peniche. “Depois do que acabei de ouvir, acho que não tinha coragem de lutar contra a ditadura. Se vivesse naquele tempo, tinha tanto medo de viver”, desabafa Vera Almendra, 18 anos.

Miúdos como eles

Eduardo Brissos, o primeiro a falar, trouxe ao auditório a realidade do concelho de Odivelas há meio século. A miséria traduzida em ausência de assistência médica, de saneamento, de água canalizada. De casas minimamente dignas desse nome. Pobreza trazida à tona nas cheias de 1967, ainda que o regime, através da censura, tivesse omitido o verdadeiro número de mortos na tragédia. 

“Há 50 anos, nos concelhos de Loures e Odivelas, poucos eram os pais que podiam pôr os filhos a estudar em Lisboa. No meu tempo, nestes concelhos, muitos meninos andavam descalços. Começavam a trabalhar aos 12 anos, ou ainda antes”, contou-lhes Brissos. 

A jovem audiência ouviu em silêncio, fixada no painel de azulejos projetado na tela do auditório. Em azul e branco, a composição evoca a resistência de um grupo de trabalhadores da fábrica de Louça de Sacavém, em 1937. Brissos explicou: eram miúdos com a idade deles, entre os 13 e os 20 anos, aprendizes que apenas protestavam, ordeiros, contra a repressão sentida na fábrica. A “Greve dos Rapazes”, nome feliz dado ao protesto, levou à prisão 22 deles e à revolta da população, que acorreu aos portões da usina para acompanhar a vigília das mães e irmãs dos detidos. 

No final, o episódio é comentado. “Devia ser mesmo difícil”, diz Mariana Paulino, de 17 anos. Sara, de 14, garante que resistiria: “Acho que me revoltava para mudar alguma coisa. Mesmo que tivesse filhos, não me calava”. “Se tivesses filhos, ainda mais razão tinhas para lutar”, acrescenta Matilde, da mesma idade. 

Dinis fica atento ao que conta José Tavares Marcelino: “Comecei a trabalhar mal terminei a quarta classe. Primeiro, numa loja de vidros, depois numa oficina de enxadas. Com 16 anos, numa loja de bicicletas a motor. Depois fui estudante-trabalhador. Empreguei-me como técnico de Eletrónica na TAP. Fui preso aos 31 anos por ter em casa alguns jornais proibidos; fui espancado e isolado, na esperança de que denunciasse os amigos. Por fim, condenaram-me a dois anos de cárcere, numa prisão de alta segurança, em Peniche”.

“É uma questão de coragem”, comenta Dinis. “Estaria disposto a ser preso por razões políticas. Mas não gostava que os meus filhos passassem pela mesma situação. Faria como o José Marcelino: resistia”. 

“O que é estar isolado?”, quiseram saber. “Uma cela onde mal cabe uma cama”, respondem-lhes. A descrição suscitou um sonoro “horrível”. 

“Sabem quem foi o Humberto Delgado?”, desafiou Tavares Marcelino. Não sabiam. O resistente antifascista, que aos 19 anos participou numa manifestação comemorativa do 5 de Outubro, ao lado de Delgado, levou-lhes imagens da intervenção da polícia a cavalo, dispersando com violência manifestantes pacíficos. “Caramba, porquê? Eles não estavam a fazer nada de mal,” comentou-se na sala. 

Pedro, de 14 anos, sabe que tentaria ajudar a resistência. “Como, é que ainda não sei”.  

José Tavares Marcelino e Manuel Glória -- Foto: Paulo Spranger/Global Imagens

Tantos

Martim ficou impressionado com o número de presos políticos anunciados pela URAP – cerca de 34 mil, dos que se conhecem. Nunca mais esquecerá quatro nomes: Aljube, Caxias, Peniche, Tarrafal. Ouviram dizer que na prisão africana, as celas, muitas delas mortalhas, foram construídas pelos próprios presos. “Gosto de achar que faço as coisas a pensar no futuro. No futuro dos meus filhos e nas gerações futuras. Se fosse preso, era, mas juntava-me a eles. Ainda mais sabendo que eram tantos. Houve heróis que salvaram Portugal”, garante, do alto dos 14 anos. 
Durante a sessão repetiu-se a pergunta: “As mulheres também eram presas?”

Foi, então, explicado. Presas, discriminadas, invisíveis. Subalternas. Poucas tinham cursos superiores, ou direito de voto. Nenhuma podia sair do país sem autorização do marido. Não havia divórcio. “Pensando em mim, e em tudo o que já alcançamos, não consigo imaginar como seria ser mulher naquela altura”, comenta Vera, de 18 anos. “O que será que sentiam? Deviam estar sempre tão tristes e reprimidas”.

Mariana Paulino, um ano mais nova, vem de uma família de esquerda: “Os meus avós tiveram sempre as mesmas opiniões políticas, foram sempre pessoas de esquerda. O meu avô, sempre em prol da liberdade. Por isso, acredito que a vida da minha avó tenha sido mais fácil. Pelo menos não estava num casamento por obrigação”. 

Ibrahim acompanha a indignação comum: “As mulheres viviam numa grande injustiça. Estaria ao lado delas, ainda mais porque não podiam lutar. Estaria, e estou”.

E atualmente continua a ser preciso? “Hoje, com tanta informação, não voltaríamos a esses tempos. Nunca iríamos aceitar”, antecipa-se Vera. Todos sabem que ser jovem há 50 anos implicava lidar com a Guerra Colonial. Ibrahim tem raízes na Guiné-Bissau. Nem hesita na convicção: “Se tivesse de ir para a guerra não me importava, porque sabia que estava a lutar pela minha família e pelo meu país. Na altura escolheria a Guiné, claro”. Martim é menos categórico: “Não passei na pele o que eles passaram, não consigo dar uma opinião válida. O meu avô esteve na Guiné e já lhe ouvi coisas aterrorizadoras. Ouve mal por causa do barulho da arma que usava. Não consigo dizer se iria ou não combater”. Já o avô de Dinis cumpriu o serviço militar em Moçambique. “A experiência dele não é tão má. Já me disse que não matou ninguém.”

Eduardo Brissos e Humberto Moreira -- Foto: Paulo Spranger/Global Imagens

Amor para a vida

Ficaram a saber que há livros que não se podiam ler, filmes que não se podiam ver, músicas que não se podiam ouvir. Qual foi a maior conquista do 25 de Abril? 

Matilde assevera: “Poder expressar-me, porque eu sou uma pessoa que tem muitas opiniões. Expresso sempre o que penso. Sem ofender ninguém, mas dizendo o que penso. E quero ter essa liberdade para sempre, sem sofrer consequências descomunais”. Sara subscreve: “Não me calo com injustiças. E explico sempre as minhas razões. Concordo com tudo o que se melhorou, foi muito bom, sobretudo a melhoria na vida das mulheres. Trabalham, ganham dinheiro e não dependem dos homens”. Matilde tem uma certeza: “Sem liberdade e igualdade, um país não evolui. As pessoas não tinham liberdade para escolher o futuro e, portanto, não podiam contribuir para o país”. 

Nenhum destes jovens acredita que, um dia, poderão ser presos por defenderem aquilo em que acreditam. Mas mantêm algumas reservas. “Não direi voltar a uma ditadura, mas acredito que podemos vir a estar numa situação em que não falaremos tão abertamente quanto hoje”, diz Mariana. E revela o que diz ser um sinal: “Há uma coligação que tem lá dentro um partido monárquico. Esse partido está no governo. Não compreendo como há quem possa votar na monarquia.” 

Sabem reconhecer a xenofobia – “há colegas da escola que acham que há muita imigração, que são muitos, e por isso têm de ir embora” –, e o racismo. “Hoje há menos, quase não o sinto. Mas há uns anos senti-o muitas vezes”, diz Ibrahim. 

Leonor admite que “há jovens que não querem saber da liberdade”. Para Martim, “a liberdade de expressão é a mais importante das liberdades”. Por isso, promete: “Votarei sempre para ter um país mais livre”. Pedro, de 14 anos, diz que “não se consegue viver sem liberdade, só sobreviver”. Martim reforça: “Viver oprimido não é viver”.