21 agosto 2015 às 00h00

António Sampaio da Nóvoa: "Já estou a pensar como Presidente da República"

Das vestes pesadas de Magnífico Reitor e das condecorações brilhantes passou para uma versão que, na verdade, lhe era habitual: fato e gravata, ou camisa de colarinho aberto, ou mesmo uma banal T-shirt. É a versão Tomané, como é tratado entre os mais próximos desde os bancos da escola minhota.

Ana Sousa Dias

Nasceu em Valença em 1954, com uma mãe dessa mesma terra. O pai é juiz conselheiro jubilado e foi ministro da República nos Açores. Tomané e os quatro irmãos passavam as férias na barafunda familiar do lado paterno, na Casa de Boamense, em Famalicão, onde se juntavam quase 40 primos. Para poder ir jogar para a Académica, aos 16 anos inscreveu-se em Matemática na Universidade de Coimbra, estudos de que não reza a história - foi um tempo de futebol e de entrada nas atividades sociais e políticas. Em Lisboa, em plena revolução, casou-se sem avisar ninguém, sem convidados nem fotografias. O único filho, André, nasceu em 1980 e com ele tem, embora com percursos diversos, uma cumplicidade feita dessa capacidade de mudar de rumo, de procurar novos caminhos. Já escreveram juntos artigos para revistas científicas e o pai diz que a articulação é perfeita, nas diferenças como nas parecenças. Doutorado em Genebra, na mítica escola de Ciências da Educação onde conheceu Jean Piaget, fez outro doutoramento na Sorbonne, em História Contemporânea. Diz que não fica por aqui, que ainda vai fazer um doutoramento em Filosofia "fora do mundo francófono". Os últimos anos foram de grandes mudanças: morreram a única irmã e a mãe, e assim perdeu o lado feminino do clã. Conseguiu a fusão das universidades de Lisboa. Decidiu candidatar-se à Presidência da República, com um grupo de apoiantes que conta três ex-presidentes. O que é que nunca pode faltar na casa dele? Bolas, bicicletas e cães.

A candidatura de Maria de Belém representa uma preocupação para si?

A candidatura era previsível, já tinha sido lançada e anunciada. É útil e desejável que estas clarificações se deem. Tenho vindo a apelar há meses a essa clarificação, teria sido melhor ter feito isso com mais tempo, da parte de todos os candidatos, não estou a falar só da dra. Maria de Belém. É um sinal de que as presidenciais não podem ser desvalorizadas, não podem ser uma segunda volta das legislativas, não devem ser um fator para ajustes de contas entre partidos, dentro dos partidos, para lutas de fações ou lutas partidárias. As pessoas têm de se apresentar com coragem, com as suas ideias, e quanto mais cedo melhor.

Não teme que a divisão do eleitorado na área do Partido Socialista venha impedir uma votação maior em si? Poderá impedi-lo de ir à segunda volta?

A minha grande preocupação deste momento é que nos concentremos seriamente sobre as legislativas. Tudo o que nos possa distrair disso é mau para o país e para uma mudança do ciclo político em nome da qual eu apresento esta candidatura. Há um bocadinho de irritação ou de enjoo, não sei se são estas as palavras certas, em relação à permanente discussão em torno de coisas que não são o essencial. Abrimos os jornais, as televisões e parece que as eleições presidenciais vão ter lugar no dia 4 de outubro e que as legislativas serão daqui a uns meses. Isto é bom para quem quer que a situação não mude. Para quem não quiser prestar contas destes quatro anos de um enorme sofrimento para Portugal, de uma situação que nos conduziu a um país mais pobre, com menos futuro, com menos esperança, isto é bom. Mas não é bom para quem quer uma mudança do ciclo político. Temos de falar mais do país. Temos de concentrar-nos nos problemas e perceber como podem ser resolvidos. As presidenciais virão mais tarde e é bom que as pessoas tenham ideias para isso e apresentem as suas propostas, mas era bom que elas não perturbassem. Há uma grande perturbação nestes calendários.

Está a criticar Maria de Belém por ter apresentado a candidatura no período pré-eleições legislativas?

Parece-me um calendário estranho. Há tantos meses que há essa possibilidade, há tantos meses que eu venho fazendo apelos a todos os candidatos para que, com coragem e frontalidade, assumam as suas candidaturas... Não direi mais do que isso, não me compete a mim dizer.

Todos os prováveis candidatos da direita estão a guardar-se para depois das legislativas.

Não sei, há sinais diversos nessa matéria e também não me parece bom que se estejam a guardar para depois das legislativas. Como me dizia um grande amigo e grande constitucionalista, há quase uma subversão da Constituição na ideia de relegar para plano secundário as presidenciais, fazer depender as presidenciais de uma lógica das legislativas, como se a Constituição não estivesse a ser respeitada nos seus princípios e nos seus valores de separação destas duas eleições, que são as duas igualmente importantes para Portugal. Este jogo de calculismos, de taticismos que atravessa fraturas dentro dos partidos não é bom para nós. Pessoalmente, quero manter-me à margem disso tudo. Apresentei no tempo em que achei que devia apresentar as minhas ideias em nome de uma ideia nova de cidadania, de participação na vida política. Esta é uma candidatura que se baseia na esperança em que Portugal pode mais, os portugueses podem mais, podemos ser mais do que temos sido. Não somos um pequeno país periférico numa ponta da Europa que não tem voz, que não vale nada. Temos que ter uma capacidade de reconstruir um projeto soberano, um projeto nacional dentro da Europa com capacidade de soberania, de orgulho de sermos portugueses. E para isto é preciso que esta seja uma candidatura limpa, que não esteja permanentemente a tropeçar nas pequenas querelas. Perante a pressão de pessoas, de redes sociais, de comunicação social, que é legítima, perante este ruído todo, é difícil uma pessoa manter-se distante e dizer não. Temos de olhar para os problemas de Portugal e ser capazes de identificar uma maneira de abrir um ciclo novo que combata as desigualdades que nenhum de nós suporta, a falta de emprego, a emigração, as conflitualidades entre gerações, entre quem tem emprego e quem não tem, que seja um fator de valorização da dignidade do trabalho, da dignidade humana. São esses valores que quero trazer para a candidatura e é difícil quando me estão permanentemente a perguntar sobre o gesto, sobre o SMS, sobre a mensagem. Não quero deixar de responder mas não vim para isso. Não fiz o gesto que fiz, duro, difícil do ponto de vista pessoal, para estar dentro dessas coisas entre o mesquinho e o quezilento. Felizmente as pessoas percebem.

Acha que pode levar essas questões para o debate político?

Farei os possíveis e os impossíveis para que essas questões sejam as que nos mobilizam e não o permanente bate-boca. Não se entrega a vida a uma causa ao fim de muitos anos, com a idade que tenho, para essas coisas. Para isso não vale a pena.

Está a preparar uma campanha centrada nos problemas das pessoas?

Nos problemas das pessoas e no futuro de Portugal. Na ideia de que temos de reconstruir um futuro de esperança. Esta é uma candidatura da esperança e as pessoas têm-me dito em todo o lado é temos de voltar a acreditar. Não acreditamos no país, não acreditamos nos políticos, agora também não acreditamos na Europa. Parece que não acreditamos em nada porque nos falta algo ou alguém que possa ser o portador dessa dimensão de esperança.

Não corre o risco de ser um balão que depois se esvazia, como aconteceu com o PRD?

Há uma diferença substancial entre o que procuro dizer e outros projetos noutros momentos. Este é um momento muito diferente da política em Portugal e na Europa. Hoje não é possível fazer política sem a participação das pessoas. Não se trata de eleger uma pessoa que depois pode ser esse tal balão que se esvazia por uma razão qualquer. Trata-se de fazer parte de um projeto. O que vai ditar a vitória ou a derrota desta candidatura vai ser o saber se temos a maturidade suficiente como povo, política e cultural, para inscrevermos a nossa presença numa dimensão de participação. Se o conseguirmos, esse risco não existe porque eu não estarei lá sozinho, não estarei lá como "foi eleito, agora que faça". Estarei lá como parte de uma consciência social mais forte que se traduzirá em dimensões políticas. A minha candidatura procura ser coerente com o que vai ser a política do século XXI, que não é igual à do séc. XX nem à do séc. XIX.

A política hoje não é feita de grandes comícios e cartazes?

Nem comícios nem cartazes nem promessas. Não é a ideia de que vamos eleger alguém e depois esse alguém que faça alguma coisa. É permitir que todos acedam à maioridade da política, e é isso que distingue a minha candidatura de todas as outras, de pessoas que foram presidentes ou secretários gerais de partidos e que trazem uma outra ideia da política. Eu venho de uma política da cidadania e da capacidade de inscrever. Se um candidato como o Sampaio da Nóvoa, que vem dos lugares de onde vem, da cidadania, pode ser eleito presidente da República, também todos nós podemos aceder a essa maioridade da política. Vai ser essa a verdadeira decisão a tomar no dia das eleições.

Isso implica que não é uma derrota pessoal, é a derrota de uma esperança?

Eu não vou perder. Temos todas as condições para que a candidatura, nos termos em que a procuro definir, seja vencedora. Quando se luta por certas dimensões do que é o futuro de uma sociedade, nunca se perde. Mesmo que possa haver uma paragem ou retrocessos, mais tarde ou mais cedo vai lá estar esta a dimensão, uma nova espessura, uma nova capacidade de participação, em que já não se trata apenas de escolher alguns para nos governarem ou para nos presidirem durante quatro ou cinco anos, mas de estar com esses alguns ao longo destes anos, fazer parte de um movimento e de um processo. E isso pode ser que comece a ganhar-se em janeiro de 2016, mas mesmo que possa haver um revés nessa eleição já se ganhou qualquer coisa. Não vejo isso pelo lado da desilusão mas pelo lado de uma construção que se vai fazendo. Essa construção num momento chega a qualquer coisa, noutro não chegou ainda mas já deu um passo nesse caminho. Essa caminhada está a fazer-se.

E se ganhar a eleição presidencial, mas as eleições legislativas tiverem sido ganhas pela coligação PSD/CDS? Ser presidente com um governo que continua a aplicar a mesma política perturba os seus projetos?

Quando falamos a partir de cenários ficamos prisioneiros das respostas e perdemos um pouco da nossa liberdade para agir na circunstância mais adequada. Temos duas eleições e as duas têm de ser respeitadas integralmente. Em situações em que as pessoas são portadoras de ideias diferentes, tem de haver um acordo. Um governo como o que temos agora, se vier a ser reconfirmado em sede de eleições legislativas, não será exatamente o mesmo se eu for presidente ou se eu não for presidente, na medida em que ele próprio também terá de respeitar a decisão dos portugueses no momento em que me elegeram. É isso que está na Constituição, eu bato-me pela Constituição e pelos seus valores e portanto não poderia responder de outra maneira. Na altura terão de se encontrar os equilíbrios que permitam respeitar essa dupla decisão dos portugueses, sendo que não se pode diminuir nem uma nem outra das decisões.

Preferia uma maioria à esquerda?

Eu prefiro que haja uma mudança do ciclo político. E essa mudança pode ser feita de muitas maneiras, há muitas configurações possíveis. Não devemos, eu não o faço, anular à partida a possibilidade de votações significativas em partidos que se vão apresentar pela primeira vez, não devemos fechar este debate, e ele muitas vezes é fechado dentro das configurações tradicionais. Temos de estar preparados e atentos para saber ler os sinais das votações e saber construir um novo ciclo político diferente do que agora termina.

O que é que lhe passou pela cabeça para pensar que ser Presidente da República lhe caía bem?

Estas coisas cruzam sempre duas dimensões: a pessoal e a do país. Na dimensão pessoal, eu tinha acabado o projeto de fusão das universidades de Lisboa e sentia-me confortado com isso. Tinha acabado um ciclo da minha vida e estava disponível para outra coisa. Essa outra coisa bateu fundo no momento do país. Vivemos um momento tão excecional e dramático no país e na Europa que quem sente que pode dar alguma coisa tem a obrigação de a dar. A obrigação vem-me de um país que durante 40 anos me deu tudo o que eu podia esperar: oportunidades de educação, de ir estudar para o estrangeiro, uma carreira académica, deu-me todas as oportunidades. Nós temos de devolver algo do que recebemos. É uma espécie de responsabilidade geracional. Temos a obrigação de, se pudermos ser úteis, dizer "estou presente". Estamos todos muito cansados de mais do mesmo: pessoas, intrigas, esquemas, lógicas partidárias ou outras, promiscuidade de interesses entre política e negócio. Para ganhar um tempo novo de esperança, é preciso outra coisa. Foi a procura dessa outra coisa que me trouxe aqui.

Não tem medo de que a sua vida seja exposta, que tenha um lado público que ate agora não tinha?

Essa exposição pública é uma das coisas mais difíceis para alguém com a minha história e o meu perfil. Muitas vezes, nós não nos reconhecemos, parece que estão a falar de uma outra pessoa. Têm-me dito "Ó António, mas tu não és nada daquilo! Conheço-te há 20 anos!" Eu tinha a consciência de que era um gesto último da história da minha vida. Não quero nada. Estou aqui totalmente despojado, porque nesta fase é o que quero fazer: estar em Belém cinco ou dez anos, o tempo que os portugueses quiserem, e dar-me inteiramente a este projeto. Nisso sou muito excessivo: quando me dou, dou-me por inteiro. Se não vencer, sairei desses focos de luzes muito confortado comigo, porque pelo menos tentei. Quando decidi lançar-me nisto, houve duas ou três conversas com amigos que foram decisivas. Disseram-me: "Arrepender-te-ás sempre de não teres tentado. Podes vencer, podes não vencer mas tentaste, fizeste a tua obrigação. Não vais ser capaz de viver com a ideia de que tiveste uma oportunidade e não a agarraste". Era o momento e eu tinha a obrigação de me dar a isso com todas as dificuldades que aí vêm.

Já está totalmente a trabalhar na campanha?

Completamente, a 500%, desde o dia 29 de abril, quando a candidatura foi anunciada. Estou a pensar já como Presidente da República, no sentido em que não faço nada hoje que não faria como presidente. Quero que a candidatura seja limpa, pela matriz, pela maneira, pela independência, pela isenção, por não entrar em campanhas negras, em ataques, nas monstruosidades vulgares. Que seja limpa como imagino que vou exercer o cargo.

O que é diferente? Disse: "Já estou a pensar como se fosse". O que é que era antes?

É tudo diferente de fora para nós, é tudo igual de mim para os outros. Em mim não mudou nada na maneira como penso, como atuo, no que procuro ser - uma pessoa de independência, de isenção, de um imenso diálogo, que procura unir e não fraturar, que tem uma curiosidade imensa. Uma pessoa que, de cada vez que lhe dizem que uma coisa é insuperável, é nessa que se precipita porque é essa que quer ajudar a ultrapassar, que não fica parada em becos sem saída. Essa é a minha matriz e mantenho-a como presidente da República. De fora para mim, é muito diferente porque há muitos olhares, muitas críticas, obviamente legítimas, muita gente a falar comigo porque pensa que sou diferente. Muita gente achava que eu era uma pessoa distante, porque era reitor da Universidade de Lisboa, ou que teria passado a vida fechado em bibliotecas. Eu sou o contrário disso. Quem me conhece sabe que eu sou das pessoas com maior proximidade, que eu sou capaz de falar com toda a gente, desde a pessoa que tem a 4.ª classe à pessoa que tem 50 doutoramentos, que me é indiferente, que o meu diálogo não é pautado por isso. Tenho amigos de todas as origens, de todos os lugares, de todas as profissões, com mais ou menos formação.

Aí está a questão da notoriedade, de não ser conhecido. O que está a fazer para mudar isso?

Estou a ser eu, no sentido em que só me interessa chegar a presidente com a alma inteira e intacta. Não farei nada que não esteja no que eu faria normalmente. E isso tem sido visto, também, na campanha. Vou aos mesmos lugares onde sempre fui, ver provas de ciclismo ou feiras de artesanato. Não há razão para deixar de ir. E não vou onde não iria antes, porque não é bom vestir uma outra pele em que as pessoas não me iam reconhecer. Estou a fazer aquilo que acho que devo: visitar Portugal, conversar com as pessoas. Tem sido o tempo mais extraordinário da minha vida.

Em quê?

Desde logo, a generosidade dos portugueses. Não passo no meio da rua sem que alguém me venha dizer alguma coisa. Quando estive na Volta a Portugal, um senhor disse-me: "Eu espero que vença. Nós precisamos de mais humanismo e de mais decência na Presidência da República, nos nossos cargos".

Aí estão duas palavras que não são habituais na política.

Duas palavras que caem cá fundo Uma pessoa que se agarra a nós, quase a chorar - um homem de 30 e poucos anos que, manifestamente, estava com problemas na vida - e que não utiliza as palavras "dê-me mais dinheiro" ou "dê-me trabalho", que também seriam legítimas, mas que nos utiliza estas duas palavras, isto enche-nos o coração. É muito claro para mim que uma das frases principais desta candidatura é "Um presidente presente". Porque sinto que as pessoas estão perdidas, que ninguém cuida delas."Quando for para lá, não se esqueça de nós. Não deixe de vir cá falar connosco outra vez. Porque só vêm cá e depois nunca mais voltam." A minha presidência vai ser feita como a campanha. Vou passar os anos do meu mandato a ir às terras, a com as pessoas porque precisam disso. Há hoje um sentimento de "Precisamos de alguém que nos proteja, que cuide de nós". Um presidente não tem os poderes do governo mas pode fazer tanta coisa. A palavra faz tanta coisa.

Nasceu em Valença, como cresceu, como foi a sua infância?

Com um pai juiz e uma mãe extraordinariamente próxima, que cuidou de filhos toda a vida. Somos cinco irmãos, uma rapariga e quatro rapazes.

Coitada, controlavam-lhe os namorados?

É verdade. E era eu que era suposto fazer isso. Mas essa parte correu-lhe muito bem a ela. A minha irmã morreu, em 2012. Foi um drama brutal. A minha mãe morreu no ano passado. Foram as duas mulheres que morreram e isso impressiona muito quando estamos juntos. De repente, faltam-nos figuras femininas. Mas a minha infância foi o Norte, foi o Minho. Eu sou minhoto da cabeça à ponta dos pés. Valença é a terra da minha mãe, é a minha mátria - recorrendo à expressão do Padre António Vieira que a Natália Correia adotou - e a minha pátria, do lado do meu pai, é Famalicão. Em particular, a Casa de Boamense, que era a casa de Alberto Sampaio, o historiador do século XIX, amigo do Antero.

É lá que se juntam?

Continua a ser a casa da família, onde fiz a minha educação enquanto infância, adolescência, com os primos, com os tios, com os pais. O lugar onde me formei. Era o lugar das férias, que eram muito longas, três meses no verão. Mais o Natal, mais a Páscoa. Numa casa daquelas, com 30 e tal primos, não sei quantos tios... Era um caldo impressionante. Devo muito aos meus tios, aos meus primos, a essa família grande. Depois viemos para Nova Oeiras onde ainda vivo. Fiz o Liceu de Oeiras, depois fui para Coimbra, fiz uma formação em Artes e Teatro em Lisboa. Mais tarde fui para Genebra onde fiz a minha formação na área da Educação e Pedagogia. Em Paris, fiz a minha formação em História.

Quando diz formação são doutoramentos?

É. A esse nível, sou uma pessoa híbrida. É uma qualidade mas é uma fragilidade. Sou muitas vidas, muitas culturas, interesso-me por coisas muito diferentes, sou capaz de adotar linguagens diferentes, desde uma mais histórica até uma mais poética a até a uma mais pedagógica. Sou capaz de circular por mundos muito diferentes. Retira-me do que um autor francês chamava com muita graça os "SSS", Spécialistes Spécialement Spécialisés. Aquelas pessoas com uma formação em profundidade numa área, mas que são ignorantes de outras dimensões.

As famílias grandes dão uma preparação para a vida, um equilíbrio territorial e de relacionamentos?

Completamente. Não consigo imaginar o que é ser filho único.

Mas tem só um filho.

Gostava de ter tido mais mas as circunstâncias não permitiram. As famílias grandes têm a dimensão da interação, das aprendizagens do ocupar/não ocupar o espaço do outro, respeitar o espaço, aprender a conviver. Quando íamos para a Casa de Boamense, as viagens de carro eram uma coisa impensável, porque demorávamos o dia inteiro a atravessar de Lisboa até lá acima. Parávamos em Coimbra, onde se fazia um lanche ou se almoçava. Chegávamos a meio da tarde. O meu pai tinha um Volkswagen.

Carocha?

Sim .E nós íamos os sete lá dentro. Os sete, mais as malas, a empregada, o cão. Ainda hoje pergunto ao meu pai: "Mas como é que a gente lá cabia!?" E ele diz: "Tu e a tua irmã, os mais velhos, iam no buraco [do modelo antigo do VW]. Um dos teus irmãos ia ao colo da tua mãe, à frente. E os outros iam atrás, com a empregada e o cão." Imagino que as malas iam no teto. Havia uma ocupação de espaços de naturezas diferentes, que é uma grande aprendizagem. E havia essa outra família maior, com os meus primos, 30 e muitos, 40 talvez. Passávamos muitos meses juntos. Foi uma aprendizagem impressionante. E também, no plano "intelectual, havia a herança do tal Alberto Sampaio, do Antero de Quental, etc. "Ali era a mesa onde o Antero de Quental gostava de escrever, ali era onde o Alberto fazia não sei o quê". O escritório do Alberto Sampaio hoje vejo que era pequeno mas, na altura, era a Biblioteca Geral, enorme, cheio de livros, onde mergulhámos desde muito cedo. Muitos de nós acabámos por ir para História. Estava ontem a falar com o meu sobrinho mais novo, que vai agora para o 10.º e ele escolheu História também

A sua primeira escolha foi a História?

Não. Eu acabei por ir para Matemática, porque gostava muito e por razões conjunturais. Como nasci em dezembro e fiz a 2.ª e 3.ª classes num ano, por influência do professor, em Caminha, andava quase dois anos à frente dos colegas. Era sempre o mais novo. Fui para Coimbra com 16 anos, para Matemática. Manifestamente a Matemática não era a minha vocação. Não era àquilo que queria dedicar a vida. Fui para Coimbra para jogar na Académica, porque era um louco pelo futebol e jogava muito bem. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, eu acho que foi uma das coisas que fiz melhor na vida.

Chegou a ser titular?

Sim. Como tinha 16 anos, era dos juniores. Mas joguei no Estádio da Luz, no Estádio de Alvalade, no Estádio das Antas. Joguei à séria. Foi duro decidir vir embora. Fui convidado para ficar na Académica e não quis.

Porquê?

Foi o despertar, aos 18 anos, de uma consciência política e da ideia que não era aquilo que queria fazer. Há ali uma transição.

Vivia numa república?

Numa república que não era república. Estava no Solar 5 de Outubro. Havia as repúblicas, integradas no Conselho de Repúblicas uma entidade a que reagíamos por um conjunto de coisas que resultavam da crise académica e de muitas situações. Começaram as casas autogeridas, como o Solar 5 de Outubro. Os solares podiam ter mulheres, era uma das diferenças. Não vejo muito as pessoas do Solar 5 de Outubro mas mantenho uma relação muito... a gente não precisa de se ver. Quando fui agora em campanha à Madeira, apareceu um que eu não via há 20 anos e parecia que tínhamos estado a falar ontem.

Ainda hoje joga futebol?

Jogo.

Para mim uma das coisas misteriosas do futebol é a noção espacial dentro do campo.

A coisa mais importante do futebol é a noção espacial, a pessoa perceber onde está, onde é que o jogo se está a passar, isso é o que define quem joga bem e quem joga mal, a apropriação do espaço. Há jogadores que estão dentro de um campo de futebol, uma coisa imensa, e parecem sempre próximas de tudo; parece que a bola vem ter com eles. E há aqueles que estão perdidos, nunca se sabe onde estão. Como jogava a médio e tinha a função de distribuir jogo, sempre tive de me situar bem dentro do campo. Espero ser capaz de o fazer agora também nesta candidatura.

Quando veio para Lisboa estudar deixou o futebol?

Nunca mais joguei futebol a sério, só entre amigos. Vim para o Conservatório fazer teatro, fiz formação em Arte. Um curso atribulado porque meteu-se o 25 de Abril pelo meio. Abriu-me as portas do Magistério Primário de Aveiro, para onde fui com o curso acabado. Abriu-me as portas à vocação da minha vida, a área da Educação. Fui para lá ensinar na área das expressões artísticas, técnicas pedagógicas, etc. Era um miúdo, tinha 21, 22 anos. Participei no movimento de renovação da formação de professores, de projetos culturais, de alfabetização. Foi ali que se criou o processo de democratização do ensino. Viajei pelo país todo, pelas escolas do Magistério Primário todas do país, colaborei na organização dos novos programas, coordenados pelo Sérgio Niza, de quem fiquei muito amigo. Foi um movimento imenso de promoção do que veio ser a educação, a escola pública, uma das grandes causas deste país.

Podia ter sido apenas professor, em vez de se meter nessas aventuras?

Podia, mas a minha matriz foi sempre meter-me em trabalhos. Sempre estive envolvido em questões sociais e políticas, no sentido não-partidário, numa intervenção pública nas questões da cultura, da ciência, da educação. O Darcy Ribeiro diz na autobiografia uma coisa muito curiosa na qual me reconheço: "Eu sou serpentário como as cobras, não por ser venenoso mas porque mudo de pele muitas vezes na minha vida". Eu também tive muitas mudanças de pele. Em 1980, estava esgotado e e decidi fazer uma formação universitária a sério. Fui para a Universidade de Genebra e fiz a licenciatura em Ciências da Educação. Já tinha um curso superior mas não me chegava e toca de fazer uma formação universitária naquela que era a melhor universidade na área, com um grupo de professores extraordinário.

Ainda conheceu o Piaget?

Ainda conheci. Cada mês de trabalho ali contava um ano, porque estava lá sozinho e trabalhava 16 horas por dia. Quando me preparava para vir embora, a direção da faculdade quis que ficasse como assistente e fizesse doutoramento. Nunca me tinha passado pela cabeça. Em Portugal, os doutoramentos faziam-se aos 50 ou 60 anos e eu era um miúdo. Foi uma das maiores surpresas da minha vida e agarrei a oportunidade.

Trabalhou ainda mais, não é?

É como a história do Volkswagen, não consigo imaginar. A minha tese tinha, na versão final, 1200 páginas, escritas à mão em francês. São caixotes de papel. Foi tudo corrigido e depois bati à máquina de escrever - não havia computadores. Nova correção e foi para a revisão do orientador, Daniel Hameline, absolutamente notável. Nova revisão e bati aquilo tudo outra vez.

Que tema era?

Sobre o processo de profissionalização dos professores em Portugal, com algumas componentes comparadas. A tese recebeu não só muitos elogios do júri que fez uma coisa inédita: a exigência de que fosse publicada na íntegra, em francês. A direção da faculdade pagou a publicação.

Repetiu ao longo da vida essa dedicação de agarrar um tema e não largar?

Repeti muito, ainda que nunca mais me tenha dedicado a um tema concreto. Grande parte do meu trabalho foi construir instrumentos de trabalho. Foi o repertório "A Imprensa e Ensino: Séculos XIX e XX", o "Dicionário dos Educadores Portugueses", com 900 biografias de educadores portugueses, foi os "Liceus de Portugal", foi depois o "Evidentemente", onde todos esses dados estão condensados. Foi um trabalho mais de carregador de piano, milhares de horas, como um louco - eu e as pessoas que trabalharam comigo.

Essas obras já foram feitas em Portugal?

Sim, foram uns 10 anos disso, em paralelo com outras coisas. Até que me inscrevi como estudante na Sorbonne, na Universidade de Paris IV, por influência de historiadores que queriam perceber como eu jogava com a ligação entre as dimensões comparadas e as dimensões históricas. Foi a minha tese de doutoramento em História Moderna e Contemporânea. E eu acho que não fica por aqui.

Não?

Depois dos anos em Belém, ainda vou fazer outro doutoramento.

Em quê?

Provavelmente em Filosofia. E até sei onde mas não vou dizer, para já. Não é em Paris, nem é no universo francófono. Vou mudar radicalmente, para outro lado.

Como é que havia tempo para a família? Tem um filho, é casado. Estava ausente?

Sempre tivemos vidas muito independentes, desde o nosso casamento aos 19 anos. Casámo-nos no meio da revolução. Se me pergunta porquê, não sou capaz de lhe dizer. Quer dizer, sou capaz de lhe dizer do ponto de vista da paixão. Mas é uma coisa muito improvável, no meio de uma revolução, alguém estar a casar-se.

Presumo que uma das conversas decisivas para se candidatar foi com a sua mulher. Ela está disposta a ser primeira-dama?

Quarenta anos é muita vida, e é uma relação que é para sempre. Houve momentos de muita proximidade, momentos de afastamento, até períodos de vidas separadas. Sempre num quadro de confiança, respeito, cumplicidade. Essas três qualidades são centrais na minha vida, em todos os planos e principalmente neste. Esta candidatura, como dispõe a Constituição, é individual, pessoal. Os portugueses vão eleger um presidente, não um conjunto de outras figuras. Com o mesmo respeito com que sempre pautei a minha relação, respeito e apoio incondicionalmente que a minha mulher não queira exercer as funções tradicionais de primeira-dama e que queira continuar a sua vida profissional. Da mesma maneira, aliás, que a minha mulher respeita e apoia também incondicionalmente a minha decisão de me candidatar.

Dentro das várias funções a que um PR é chamado, e nas previstas na Constituição, há uma dimensão de representação que é muito importante, e os portugueses esperam isso de um PR. Há algumas que poderei fazer melhor, outras que poderei fazer menos bem, reconheço as minhas caraterísticas. Julgo que uma das coisas que farei melhor são as tarefas de representar os portugueses. No plano interno, estando próximo deles, falando com eles, dando voz a tanta situação de sofrimento. E no plano externo, representar os portugueses nos diversos espaços em que isso seja preciso. Em todas as circunstâncias, os portugueses serão representados ao mais alto nível e com a maior dignidade. Encontrarei as formas mais corretas, mais pertinentes e mais contemporâneas, mais de acordo com o que é a nossa sociedade, para que isso aconteça.

Conhece muito mundo, andou sempre de um lado para o outro.

Vivi em muitos lugares além dos que já referi, como o Wisconsin e Nova Iorque Recentemente, passei mais de um ano em Brasília.

Gosta de dar aulas?

Depende do que seja dar aulas. Não gosto do formato tradicional de 30 alunos. Isso define e tipifica aquilo que sou. Gosto dos pequenos grupos e dos grandes grupos, não gosto dos grupos intermédios. Gosto muito de falar com as pessoas, como estou a falar consigo, de ir tomar um copo com dois ou três amigos, de orientar um estudante de doutoramento ou um pequeno grupo de mestrado, de trabalhar com um grupo de quatro ou cinco pessoas num projeto de investigação. E adoro o grande número, estar perante 2000 pessoas a fazer uma intervenção ou um discurso, fazer palestras para muita gente.

Uma vez no Brasil preparei uma aula toda bonitinha, com power point, para professores. A puseram-me num campo de basquete com 500 miúdos de 16, 17 anos. Eem 30 segundos, tive de deitar tudo fora, arregacei as mangas, respirei fundo e avancei.

E correu bem?

Maravilhosamente bem. Sou um homem do improviso.

Mas o improviso vem de ter uma base muito sólida.

O improviso prepara-se, muito, muito, muito. Dá muito trabalho. É aquela citação do Pasteur - uma das citações da minha vida -, ao explicar que muitas grandes descobertas científicas foram feitas por acaso: "Mas nunca se esqueçam que o acaso dá muito trabalho". É preciso preparar o olhar, a mente, para que possamos estar aptos a responder. A minha vida é feita disso: preparação, leitura, reflexão, debate, estudo. Sou incapaz de me deitar sem ler uma ou duas horas. Posso chegar a casa estoirado mas ninguém me tira isso.

E o que lê?

As coisas mais variadas. A minha leitura raramente é dirigida. Agora, sinto necessidade de saber números, estudar dossiês, ir por temas: saúde, economia, finanças. Mas, tipicamente, é uma leitura sem orientação. Muita poesia, muita ficção, muitos ensaios - eu sou um consumidor de ensaios. Talvez seja por isso que gosto muito de António Sérgio. Gosto muito dos livros de pensamentos, aforismos, como por exemplo escreveu o Teixeira de Pascoaes, as greguerías. Gosto muito de diários. Leio e releio Torga, vou para trás e para a frente, irrito-me, pacifico-me, irrito-me outra vez. E o Vergílio Ferreira, aqueles fragmentos.

Não consigo dormir sem ler, parece que me falta qualquer coisa, não adormeço. Posso ler em qualquer lado. Só preciso de ter um lápis comigo porque preciso de ir anotando. Não pode ser caneta, deixa uma marca que não se pode apagar e eu não quero deixar marcas que não saem.

A sua casa tem montes de livros?

Em todo o lado. Fiz uma parte da minha vida e das poupanças em função dos livros. Não da compra mas do sítio para pôr esses livros. E a pintura é a minha perdição. Não gasto dinheiro, não tenho hábitos de consumo, jamais gastaria um monte de dinheiro a comprar um carro. O meu carro tem 15 anos e comprei já usado, já não anda, deve acabar por estes dias. A única coisa em que perdi um bocadinho a cabeça foi a comprar alguns quadros.

Portugueses?

Basicamente portugueses mas um ou outro estrangeiro. Tenho uma paixão particular por um desenho feito numa toalha de papel, mas pelo Di Cavalcanti. Um dia, entrei numa galeria no Brasil, estava a caminho do aeroporto e tinha de gastar uma molhada de notas que me tinham dado e não valiam nada. Havia quadros lindíssimos e eu bato o olho naquilo sem saber de quem era. O galerista riu-se - "não escolheu mal" - porque eu não tinha visto de quem era. Estivemos várias horas a negociar. Deixei lá todas as notas e trouxe o quadro. Quando cheguei ao táxi, não tenho dinheiro para pagar, fui a correr ao galerista, dizer: "Olhe, pelo amor de Deus, pague-me pelo menos o táxi".

E tenho algumas outras coisas de que gosto muito, das novas gerações. Sou da família do Cruzeiro Seixas, do lado da minha mãe. Tenho tido uma relação extraordinária com ele e tenho várias coisas dele de que gosto imenso.

E esta história de andar de bicicleta vem de miúdo?

Sempre tivemos bicicletas, lá em casa - a Casa de Boamense. Também havia sempre muitas bolas. Quem me quiser ver perdido é porem-me uma bola à frente. Gosto de todos os desportos que têm bolas.

Tirando a bicicleta.

Eu jamais faria ciclismo como desporto. Agora, se tiver uma bola, pode ser ténis de mesa, ténis, andebol, voleibol, futebol, hóquei em patins, que joguei na ADO [Associação Desportiva de Oeiras]. O único desporto que fiz que não tinha uma bola foi natação. Quando viemos para Lisboa, os meus pais puseram-me no Sport Algés e Dafundo. Acho que era por estarmos perto do mar e ser importante saber nadar. E, portanto, sempre houve bolas e bicicletas. E cães. São as três coisas que sempre houve nas casas todas, tanto dos meus pais, como na Casa de Boamense. E na minha.

É verdade que ia para a Reitoria de bicicleta, quando era reitor?

Algumas vezes. Não era todos os dias.

Não ficava com óleo nas calças? Punha uma mola?

Ficava com essas coisas todas, o que é ótimo, não é? Óleo, mola da roupa...Depois deram-me uma argola... Mas eu normalmente punha as calças dentro da meia. Também já vim aqui para a sede de bicicleta.

Quando fez a fusão das duas universidades de Lisboa, certamente sentiu muitas pressões. É uma questão política: como se resiste às pressões dos partidos, dos lobbies, de todos os lados?

É preciso ter um estatuto de enorme independência. Se uma pessoa tiver uma história de mistura com grupos, fações, interesses, ninguém a leva a sério quando disser que vai ser independente. Mas quando uma pessoa é independente os outros percebem que não está ali a fazer o frete a ninguém, nem em nome seja de quem for. É muito importante sentir-se que quem está a fazer um projeto não está a aldrabá-las; quando o está a ouvir, de facto não decidiu ainda. A fusão das universidades ganhou-se no momento da escuta, quando, ao longo de vários meses, escutámos professores, investigadores, estudantes e funcionários. Os funcionários foram centrais neste processo, e os estudantes, os professores e os diretores das faculdades também. Ouvir para construir uma opinião muito importante. O Presidente da República tem de ser capaz de fazê-lo e de dar voz às pessoas.

Resistimos às pressões graças às decisões coletivas tomadas em determinadas fases: "Isto foi decidido em diversos órgãos e, portanto, está decidido. Não vale a pena virem agora tentar fazer pressões". O meu encontro com o António Cruz Serra, na altura reitor da Universidade Técnica de Lisboa, foi extraordinariamente importante. Não nos conhecíamos, toda a gente nos metia veneno um contra o outro. Nós conversámos meia hora e não precisámos de dizer mais nada um ao outro. E a partir daí tudo aquilo encaixou, criou-se uma confiança indestrutível entre os dois. Ppouco e pouco as pessoas foram entrando, com o apoio de gente extraordinariamente importante. O João Lobo Antunes, do lado da Universidade de Lisboa, o José Maria Brandão de Brito e o Carlos Mota Soares, do lado da Universidade Técnica, o professor Adriano Moreira, presidente do Conselho-Geral da Universidade Técnica. Eu sei pôr pessoas com pensamentos diferentes a trabalhar para um projeto futuro. E é isso que quero fazer como Presidente da República.

O atual Presidente tem insistido na convergência dos partidos do bloco central. Subscreveria esse discurso?

Não subscrevo nenhum discurso que aponte apenas um caminho. Um dos problemas dos 40 anos de democracia em Portugal tem sido o famoso de arco de governação. Parece que tudo se esgota nessas possibilidades de entendimento. Eu não fecho aí a possibilidade de entendimentos partidários. Tudo tem de estar aberto em função dos resultados eleitorais. Um Presidente da República tem de saber interpretar os resultados e encontrar as soluções para juntar as vontades que for necessário juntar. Não tenho dúvidas de que o conseguirei fazer, sei fazer isso. Saberei construir os acordos, as alianças necessárias para assegurar estabilidade, em função do que os portugueses quiserem. Nem sou eu que defino o que os portugueses querem, nem devo influenciá-los. Chegou a altura de virar uma página da nossa história, em relação a este ciclo brutal de austeridade e também do que é o entendimento político. Precisamos de outra forma de entendimento, sem que isso subalternize nenhum partido em relação a outro. Precisamos de construir encontrar alternativas, outras formas de entendimento, outras alianças. Tenho os argumentos dentro de mim para o fazer. Temos de perceber essa responsabilidade. Queremos contribuir para um país ingovernável? Queremos contribuir para mais conflitualidade? Ou queremos contribuir para uma coisa diferente, na qual todos nos possamos rever, independentemente das divergências dos partidos? Dir-me-á que isso é de uma enorme inocência. Há momentos em que nós precisamos de partir de uma base de inocência.

As pessoas têm muitas expectativas. Ainda há pouco disse que lhe dizem "não se esqueça de nós". Está a candidatar-se numa altura de vacas magras. Isso não o assusta?

Preocupa-me a situação das pessoas mas o desafio de assumir a Presidência num tempo destes não me preocupa. É nesses tempos que é preciso que tenhamos um Presidente capaz de estar ao lado das pessoas. Como dizia o Padre António Vieira, "A maior potência de quem é superior é ser impotente para criar mais desigualdades." Quero ser capaz de fixar alguns objetivos, que são os que estão na minha carta de princípios. Não podemos ter um país mais desigual, para isso não contem comigo. As pessoas precisam de um presidente com elas, alguém que seja solidário, mesmo que não consiga resolver todos os problemas. Um presidente que seja capaz de dizer coisas que não são populares. Por exemplo: sejamos capazes de construir uma sociedade do século XXI que não pode ser igual à do século XX, com este frenesi do consumo, esta agressão permanente ao planeta, tem de ter outros estilos de vida, temos de pôr a inovação e a tecnologia ao serviço de uma outra capacidade de produzir. Um presidente que diga "Calma. Não é porque hoje temos 100 euros mais que desatamos a comprar carros de alta cilindrada. É preciso canalizar as nossas energias e as nossas poupanças para um país que produza mais e não esteja num permanente frenesi de consumo. Temos de ser capazes de valorizar outras dimensões da vida.

É este discurso que me atrai infinitamente para junto do Papa Francisco. O discurso da última encíclica de cuidar da nossa casa comum, em que ele elabora a partir das questões do ambiente e vai às questões das desigualdades, da dignidade do trabalho e da pessoa humana, da necessidade de encontrarmos um outro tipo de estilos de vida em que podemos viver muito bem sem esta agressão permanente. Grande parte do nosso futuro, aqui em Portugal, vai estar nos jovens e nas cidades. E na modernização do rural, também.

É nisso que fala quando diz que é um outro caminho?

Exatamente. A juventude atual está disponível para ter outro tipo de estilos de vida, outro tipo de maneira de viver a cidade, de se relacionar com os transportes, com a habitação, com o consumo. Há tantas coisas hoje que muitos deles fazem sem terem de consumir: ficar em casa uns dos outros, os famosos couchsurfings, as trocas, as lógicas... Precisamos de renovar a nossa vida social e económica por aí. A matriz é simples: educação, educação, educação. E educação que não seja igual à de hoje, que tenha a capacidade de preparar as mentes para a imprevisibilidade, a adaptação. Não esta educação medíocre de formatação, de incapacidade de por as pessoas a pensar. Tem de ser uma educação muito mais ambiciosa, do século XXI. E que o conhecimento e a ciência estejam ao serviço de uma tecnologia amigável do ponto de vista ambiental, capaz de produzir mais com menos recursos, capaz de nos encontrar soluções para as pessoas idosas, para os transportes, para a questão da energia. Portugal tem essa população jovem, esse conhecimento, Tem uma posição geográfica única no mundo, tem uma língua única no mundo. Não há nenhuma língua como a nossa, do ponto de vista da capacidade de comunicação. Temos uma posição geoestratégica fantástica. Temos a característica de acolhimento, de sermos capazes de receber outras pessoas. Temos tudo para conseguir coser estas coisas, se soubermos apostar na educação e no conhecimento. Nos últimos anos, parece que ficámos fechados num pensamento de muito curto prazo. O nosso problema não é financeiro, o nosso problema é económico.

Falou no Papa Francisco. É católico?

Tenho uma educação profundamente católica e muito marcante. A minha adolescência foi passada em grupos de renovação, que vêm ainda do Concílio do Vaticano II. Tenho uma dimensão religiosa muito forte. Tive momentos de maior afastamento, hoje tenho maior proximidade ao fenómeno religioso, talvez seja da idade. Certamente a morte da minha irmã e, sobretudo, da minha mãe, foram muito marcantes. Não digo que sou católico, no sentido estrito do termo. A palavra "agnóstico" define isto, só que não gosto da palavra. Os portugueses não sabem bem o que é, às vezes confundem com ateu. Tal como Camus ou Einstein se declaravam agnósticos. Ou naquela belíssima definição do Jorge Luis Borges: "Ser agnóstico é admitir todas as possibilidades, mesmo Deus. E eu admito que isso abra mais o meu mundo, me torne mais tolerante em relação à vida humana. Se assim for, é bom que assim seja". Eu acredito nisso. Eu circulo muito, tenho um enorme respeito por todas as crenças religiosas, muito interesse, nas minhas leituras e na minha proximidade, pelo fenómeno religioso não-católico. Isso dá-me grande tolerância e abertura, o que me permitirá ser um presidente laico, obviamente. Portugal é um Estado laico e tem de o ser. Mas tenho uma mundividência para o fenómeno religioso que pode ser importante nesta fase do mundo.

(Versão integral da entrevista neste dia publicada na edição impressa e no e-paper do DN que, por questões logísticas, teve de ser editada)

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