09 janeiro 2016 às 00h01

Fernando Santos: "Estou concentrado em ser campeão da Europa"

Almoço com Fernando Santos

Nuno Saraiva

A reserva está feita em meu nome. Mas assim que entro no Faroleiro do Guincho percebo de imediato que quem manda é "o engenheiro". Fernando Santos é cliente assíduo há mais de 43 anos, desde o tempo em que os treinos matinais no Estoril-Praia se faziam a subir e descer as dunas e à tarde se rumava à serra de Sintra. "Era uma barraca de madeira quando cá vim a primeira vez. Durante um grande período da minha vida, todas as datas mais importantes, o dia de Ano Novo por exemplo, eram aqui passadas. Ainda hoje esta é a mesa em que me sento habitualmente."

Começamos por umas gambas cozidas regadas a flûtes de cerveja a que hão de seguir-se um robalo ao sal e um Douro Dona Berta branco. A conversa começa pelas memórias de jogador e do princípio da carreira como treinador. Foi no Estoril que começou como adjunto de António Fidalgo, seu afilhado de casamento, e que acabaria por sair para o Salgueiros deixando o menino nos braços de Fernando Santos. "Era para ser por seis meses, e fiquei seis anos e meio." Ao tempo acumulava o comando da equipa com o emprego de diretor técnico do Hotel Palácio no Estoril. "Toda a gente sabia que eu era treinador do Estoril. Eu saía para treinar e o diretor ligava lá para baixo, numa fase difícil pois foi a fase em que reconstruí todo o hotel e tinha cento e tal homens a trabalhar sob administração direta, dormia lá a maior parte das vezes para poder organizar as coisas e de manhã ir ao treino. Ele ligava à minha procura e o meu secretário respondia que eu tinha ido à pedra. Eu ia sempre à pedra, que era ali em Pero Pinheiro, porque estávamos a fazer o trabalho nas casas de banho dos quartos com mármore. E assim foram seis anos e meio, com subida de divisão e tudo." Acabou, porém, despedido do clube e decidiu, nessa altura, que o futebol acabava ali.

Mas o bicho da bola, a adrenalina dos dias de jogo e a falta do "cheiro do balneário" começam a fazer mossa: "Ao fim de um mês e pouco começo a ter um problema que era não saber como tomar banho. [Risos] Mas é verdade. Era uma questão prática, estava habituado a sair de casa, a tomar banho no campo, era todo um ritual que foi o meu durante muitos anos. E depois começo a não saber ocupar o tempo. O banho é um exemplo caricato, mas ilustra a minha situação. Para quem não tinha tempo para pensar porque andava sempre a correr, de repente vi-me com tempo. A cabeça parecia que não funcionava. A minha concentração que era total quando tirava o casaco e vestia o fato de treino deixa de existir. Entro às nove da manhã no hotel, mas não sei o que vou fazer e há qualquer coisa que começa a mexer cá dentro." Nesse período faz um curso de cristandade por influência de um casal amigo e decide fazer uma peregrinação à Terra Santa, Israel, com a mulher e a mãe, que começa a pagar a prestações. É então que surge o convite para treinar o Estrela da Amadora, que estava em maus lençóis no campeonato. "O clube está para descer de divisão. Safa-se na penúltima jornada. Saio da cabina depois do jogo com o Guimarães e digo ao presidente que não vou ao último jogo. Ele ficou a olhar para mim a achar que eu estava maluco. Mas eu expliquei-lhe que tinha de fazer aquela viagem. No dia da partida, no aeroporto, aparece-me o padre Raul, que nos acompanhava, com um jornal na mão a perguntar-me se eu estava em Marrocos, no jornal dizia que eu estava lá a observar jogadores. Tinha sido o Estrela, para não dizer que eu tinha ido numa peregrinação a Israel."

O engenheiro do penta

É nesses dois anos que o selecionador nacional assume que o futebol é coisa séria. "É a primeira vez que percebo que ganho substancialmente mais no futebol do que na minha profissão. É então que tomo a decisão de arriscar mesmo e peço licença sem vencimento no hotel", que até hoje mantém. Depois de duas épocas bem-sucedidas na Reboleira, surge a abordagem do Futebol Clube do Porto. "Reuni-me com o Pinto da Costa e com o Reinaldo Teles na minha casa, depois de o António Oliveira ter decidido que não queria continuar. Lembro-me perfeitamente. Eles estavam a brincar com os meus cães e o presidente disse-me: "Fernando, o cavalo passa à porta uma vez e a gente ou monta ou não monta."" E Fernando Santos montou e fica para a história como o engenheiro do penta. "A minha secretária lá no hotel ficou muito indignada e telefonou para o Record, que foi o jornal que saiu com esse título, e disse-lhes: "Ele não é o engenheiro do Penta, ele é do Palácio!"" Em Portugal é dos muito poucos que treinaram os três grandes e não esconde a mágoa como foi tratado por Sporting e Benfica no momento de ser despedido.

Na Grécia é herói nacional. Eleito treinador da década, a primeira dos anos 2000, passou por AEK, Panathinaikos e PAOK antes de chegar à seleção de onde saiu depois do Campeonato do Mundo do Brasil em 2014, suspenso por oito jogos por ter sido expulso no encontro dos oitavos-de-final com a Costa Rica. Uma derrota e um castigo que até hoje não digeriu. É a deixa ideal para falar de corrupção no futebol e das suspeitas recorrentes sobre as arbitragens. Os escândalos na FIFA não o surpreendem porque o fenómeno da corrupção "é hoje transversal". "Corrupção de dinheiro nunca vi. Ouvi muitas histórias, mas nunca vi. Agora que os árbitros podem ser influenciados, isso sim. A tendência, se calhar humana, é de não se pôr contra o poder. Não marcar um penálti no último minuto aos poderosos, na dúvida não se marca. Mas não acredito que seja premeditado. Por exemplo, o mais alto dirigente da UEFA disse durante o Mundial que a Alemanha devia ir à final. É óbvio que os árbitros não podem ficar indiferentes a isso. Quando se faz uma declaração dessas está-se a condicionar, a influenciar." Aproveito o rumo da conversa para lhe perguntar sobre Sérgio Conceição, de quem foi treinador no FC Porto, e as queixas de que foi insultado pelo árbitro Carlos Xistra no final do último Guimarães-Benfica. "Tenho muita dificuldade em achar que ele possa estar a efabular. Conheço-o muito bem, pode ter muitos defeitos, mas é um gajo fantástico e com muito carácter."

Objetivo Euro 2016

Aos 61 anos, Fernando Santos chegou à cadeira de sonho, a seleção portuguesa. Garantiu o apuramento para o Euro 2016, em França, mas rejeita que a sua missão esteja cumprida. O objetivo é claro: chegar á final e ser campeão da Europa. "É um objetivo em que acredito e que acho que temos condições e capacidade para isso. Somos favoritos? Se calhar há outros mais favoritos do que nós, mas isso não nos impede de acreditar no objetivo." E planos para depois do Euro 2016? "Já dei o que tinha a dar para esse peditório de definir projetos a longo prazo. Estou concentrado no Campeonato da Europa, em ser campeão da Europa. Pelo menos fazer tudo o que está ao meu alcance para que a minha equipa ganhe o Campeonato da Europa."

Quase três horas de conversa e muitos cigarros fumados, quase só falámos de futebol, passado e presente. Fernando Santos é homem de fé, nunca o escondeu. Das primeiras coisas que faz quando está longe de casa é procurar uma igreja para cumprir os sacramentos da eucaristia e não prescinde das orações de manhã e à noite. "Todos os dias ofereço o meu dia a Deus e à noite agradeço, corra-me bem ou corra-me mal. A fé é acreditar em Deus, o que acontece com 90% da população mundial, que acredita que há uma entidade que é o Pai, o Criador. É como dizia um padre, que acreditava piamente na ciência e dizia que acreditava piamente no Big Bang. A questão que se lhe punha era quem é que tinha carregado no botão. Há outra questão em que os cristãos acreditam, que é a ressurreição. A ressurreição de quem? De Cristo, que é Deus feito homem. Aquilo em que acredito é que Cristo está vivo em nós. Está presente nas pessoas, no coração de cada um de nós." É por isso que em todos os Natais, além do paganismo das trocas de presentes, Fernando Santos canta os parabéns a Jesus Cristo.

Faltava falar de política. Por ser selecionador nacional, Fernando Santos inibe-se de assumir posições partidárias ou ideológicas. Insisto para saber o que pensa do que se passou depois das últimas legislativas, em que temos um governo que não é liderado pelo partido que ganhou as eleições. A custo, o mister lá deixa escapar que "o Parlamento aprovou, por isso é legítimo. Agora uma surpresa há sempre, não havia esta tradição." Manifesta confiança no futuro porque "é um pouco como aconteceu na Grécia, às vezes é preciso uma mudança, e isto sem ter que ver com quem lá esteve ou com quem lá está". Volto aos dias de Atenas e pergunto como viveu os dias em que a Grécia esteve debaixo do fogo europeu e sob ameaça e garrote da austeridade. "Acho que quem pagou foi um povo que não devia ter pago. Houve alguns excessos, claro, mas, tal como cá, houve excessos que não foi o povo que cometeu. Não foi o povo que alterou as contas. Vi muitos amigos a passar dificuldades que não mereciam. Eu, se fosse grego, talvez tivesse votado Syriza, porque vi o que a classe média estava a sofrer. Grande parte da culpa do que aconteceu foi da Europa, que teve uma política errada para com a Grécia. Sempre disse que o Syriza ia ganhar as eleições. Quando se perde a esperança há que fazer uma mudança, e foi isso que aconteceu. O governo foi corajoso, mas a estratégia da confrontação é que talvez não tivesse sido a melhor. Foi errada."

São quase cinco da tarde. Fernando Santos fala da família. Do orgulho que tem nos filhos e, sobretudo, de continuar "enamorado" pela mulher por quem se apaixonou há 44 anos. "Costumava dizer-se que não se muda de partido, de clube, disto e daquilo... eu a única coisa que não mudo é de mulher. É um pilar fundamental na minha vida. Vou fazer 44 anos de namoro a 24 de janeiro e sem ela tudo teria sido muito difícil."

Despedimo-nos com um abraço. Até hoje o engenheiro que eu não conhecia estava-me atravessado por causa da derrota que o Estrela da Amadora impôs em Alvalade na época de 1994-95 e que afastou o Sporting da luta pelo campeonato. Mas Fernando Santos é um homem bom. E a esses tudo se perdoa.

O faroleiro

- 1 1/2 água

- 3 flûtes de cerveja

- 1 robalo ao sal (1,62 kg)

- 1 gambas cozidas (300 g)

- 1 Dona Berta Reserva Branco

- 3 cafés

- 1 pão

Total: 159,14 euros