09 janeiro 2017 às 00h48

Descobrir a Lisboa pombalina debaixo do Campo das Cebolas

Embarcações, cerâmica, contas de colares, alfinetes, pulseiras, bases de colunas, um brasão, vestígios de edifícios. Os materiais encontrados nas escavações arqueológicas que antecedem a construção do Parque de Estacionamento do Campo das Cebolas são imensos e (ainda) podem ser vistos no local

Marina Marques

O colete verde fluorescente e o capacete branco mal tinham assentado no corpo quando a curiosidade sobre a visita às escavações arqueológicas no Campo das Cebolas, em Lisboa, é (ainda mais) aguçada por Jorge Freire. "Ontem encontrámos mais uma embarcação", logo desviando a atenção das informações que a arqueóloga Cláudia Manso e o arquiteto Filipe Homem começavam a avançar sobre o que se iria ver.

"Sendo esta uma zona ribeirinha, que sofreu um aterro muito grande no final do século XIX - isso nós sabemos porque está perfeitamente documentado - e estando em uso até essa data, seria expectável que pudesse aparecer uma ou outra embarcação. Não contávamos que aparecessem tantas", contextualiza a arqueóloga que às sextas-feiras guia os visitantes por este espaço.

"As embarcações, muitas vezes, eram utilizadas para consolidar os aterros - uma prática que ainda hoje se faz. Não é algo incomum. E esta é a escavação, em Portugal, onde se encontraram mais embarcações em contexto húmido. Não é algo que apareça frequentemente e em tão grande quantidade ainda menos. A oitava surgiu no decurso dos trabalhos de ontem", revela a diretora científica das escavações no local onde, até ao verão, surgirá uma nova praça e um parque de estacionamento para 230 carros.

Na quinta-feira de manhã, esse futuro estava ainda envolto em nevoeiro. A realidade era a de um estaleiro a céu aberto. Ainda antes de se descortinar qualquer escavação, passamos por uma bancada onde um dos elementos da equipa liderada por Cláudia Manso vai regando o conteúdo de uma caixa de plástico esburacada. "Esta é a nossa zona de crivagem", apressa-se a arqueóloga que lidera os trabalhos que desde o início de setembro estão passar a pente fino toda a área do Campo das Cebolas. E neste caso a expressão é para ser tomada em sentido (quase) literal.

Não que os arqueólogos e técnicos de arqueologia andem de pente em punho pelos mais de dez mil metros cúbicos de terra em ambiente urbano que formam a zona de intervenção do futuro parque de estacionamento subterrâneo. Antes porque todo o material recolhido é colocado nessas caixas (que afinal se chamam contentores), lavado diversas vezes, num processo repetido até que a malha dos contentores é de apenas 1mm. "Começámos com 5mm, mas depois tivemos que diminuir", explica. A miudeza de alguns dos materiais encontrados explica a mudança: contas de colares, pulseiras e milhares de alfinetes, muitos em ouro. Alfinetes? "Sim usados por exemplo nos toucados dos cabelos", esclarece a arqueóloga. "Tal como hoje estamos sempre a perder elásticos e ganchos... o que encontramos aqui é o reflexo do quotidiano na altura", diz.

Ora, a altura (temporal) de que aqui se fala vai desde uma estrutura anterior ao século XVI até ao século XX. "Uma das estruturas mais antigas que temos aqui e que ficou preservada in situ, é uma estrutura de cais ainda anterior ao século XVI, muito grande, possante, que fazia uma escadaria e terminava numa espécie de patamar circular de acesso ao rio, em pedra", informa a diretora científica. Ficava perto da atual Casa dos Bicos. E lá ficou, preservada no local, longe do olhar tanto de quem agora visita as escavações. O mesmo não aconteceu com os diferentes materiais encontrados que a EMEL está a colocar a possibilidade de expor no parque alguns materiais arqueológicos encontrados.

O espaço escavado mais perto da Casa dos Bicos também permitiu "identificar níveis de aterro do século XVI onde identificámos uma zona de construção naval". Muito dos materiais acondicionados em mais de 600 contentores é proveniente dessa época mais recuada: "muita cerâmica, de produção local de barro vermelho, vidrada verde ou melada (de uma cor amarela parecida com o mel); cerâmica modelada (com motivos decorativos); cerâmica europeia (sobretudo italiana, de majólica) e asiática (muita porcelana chinesa do século XVI", enumera Cláudia Manso. Para logo acrescentar: "e também céladon, peças pequenas e delicadas de decoração, com vidrados verdes, e martavans, espécie de talha usadas para armazenar e transportar produtos. Estes dois raramente surgem em escavações, mas recolhemos aqui alguns exemplares bastante interessantes".

Avançando pelo vaivém de pessoas e máquinas, veem-se finalmente escavações: paredes (ou muros, como lhe chamam os arqueólogos) e uma escadaria de pedra surge por baixo do nível onde antes era o desordenado parque de estacionamento do Campo das Cebolas.

"Estas são estruturas relacionadas com o edifício da Alfândega, construído entre o final do século XIX e o início do século XX. Para além de permitirem reconstruir parte do que seria a estrutura interna do edifício e compreender a forma como seriam desenvolvidas as atividades alfandegárias, ficámos também a saber que parte do edifício foi construído sobre as Casas de Ver-o-Peso". Um olhar questionador basta para Cláudia Manso continuar: "era uma repartição de origem medieval, aqui construída após a sua destruição na localização original (junto ao atual Hotel Turim) durante o terremoto de 1755". E o nome praticamente denuncia a função: "Era o local onde se pesavam, mediante pagamento, os géneros que eram vendidos em quantidades maiores que os pesos constantes das disposições em vigor".

Projeto alterado

Mas se a parede paralela ao Ministério das Finanças tem pouco mais de um século, o paredão paralelo à Avenida Infante D. Henrique e a escadaria aí adossada fazem parte do cais pombalino construído após o terremoto de 1755. Os três elementos foram incorporados no projeto de requalificação do Campo das Cebolas desenvolvido pelo atelier do arquiteto João Luís Carrilho da Graça e "vão ficar visíveis", aponta Filipe Homem. Aliás, um dos acessos ao parque será exatamente essa escadaria do século XVIII. E as grandes pedras que se veem numeradas lá em baixo, no buraco que virá a ser o parque, também vão ser reutilizadas. "A nossa intenção é integrar ao máximo os elementos existentes. Não vamos reconstituir. Vamos dar uma nova utilização. No pavimento da praça e no muro que vai dividir a praça da Avenida Infante D. Henrique", explica Filipe Homem.

Neste momento está em estudo a possível integração de uma segunda escadaria entretanto revelada pelas escavações. Também pertence ao cais pombalino, tal como uma terceira encontrada pela equipa de arqueologia. Esta última, no entanto, já não se encontra visível. "Só identificámos o arranque de três degraus, a estrutura estava muito danificada pela construção de um caneiro (esgoto) no fim do século XIX/início do XX", informa Cláudia Manso.

Paredes, paredão e escadarias decifradas, impossível deixar de reparar, uns metros mais à frente, no que resta de um passadiço de madeira utilizado para carregar e descarregar os barcos e em esqueletos de barcos semi-enterrados no lodo. Antes de aí chegarmos, Jorge Freire faz questão de referenciar o local onde uma das oito embarcações encontradas, todas do século XIX, se encontra identificada e salvaguardada in situ, "de acordo com as normas da Unesco para o património subaquático", salienta.

"No caso das embarcações encontradas primeiro, os indícios mostram que deveriam ter sido abandonadas. Nestas duas aquilo a que assistimos é a um acidente marítimo, ocorrido há mais de um século e que ali se encontra preservado. Há marcas da colisão, o que era comum no Tejo não só por causa das tempestades mas também pelas correntes do rio, fortíssimas. É o que os marinheiros gostam de chamar o toque de água - quando o vento ou a corrente leva uma embarcação a colidir com outra".

Centro da atenção de mais de uma dezena de pessoas que os vão "descobrindo", Jorge Freire coloca legendas naquilo observamos: "os limites da embarcação estão a ser definidos bem como todas as madeiras que se possam encontrar no interior, para se ficar com o esqueleto". Depois dos limites definidos, e isso já não vimos, mas Jorge Freire projeta o filme, "antes de se retirar qualquer material, é feita uma fotografia para a fotogrametria, depois passa-se então para o processo de salvaguarda dos bens para o tanque, por camadas. E ainda se escava o negativo da embarcação para perceber se há algo lá debaixo, nomeadamente espólio da embarcação".

Carga propriamente dita não foi encontrada, mas já recolheram "alguns dos alimentos usados a bordo (frutos secos e cocos), cachimbos holandeses (pequenos cachimbos de cerâmica, muito comuns no século XIX), solas de sapato, e algo muito peculiar que a embarcação grande tinha no convés - preservativos conservados no lodo".

Uma embarcação única

A embarcação grande a que Jorge Freire se refere foi a encontrada na primeira semana de dezembro, que para além de ser a maior, com 17 metros de comprimento por 3 de largura, "tem uma particularidade construtiva: tinha fundo chato, um método construtivo muito antigo, que recua pelo menos à época romana e tem algum paralelo com embarcações irlandesas. É única - até agora não se conhecia nenhuma outra embarcação como esta, uma coulé ou barca de água acima, que só navegava dentro do estuário", refere o coordenador da equipa de arqueologia náutica.

Em jeito de resumo, Cláudia Manso passa em revista o que esta equipa - no momento de mais trabalho alargada a 63 elementos, entre trabalhadores indiferenciados, arqueólogos e técnicos de arqueologia - colocou a nu nestas escavações: "temos aqui a evolução de toda esta zona ribeirinha ao longo dos séculos. Sabemos que esta foi uma zona de praia até pelo menos ao final do século XII/XIII. As muralhas da cidade estão pelo meio do casario (passam por dentro da Casa dos Bicos). No século XIII começam os primeiros aterros que continuam no século XIV. O grande aterro surge no início do século XVI com D. Manuel I, quando decide a construção do Paço Real na atual Praça do Comércio. É um aterro que vai do Cais do Sodré até Santa Apolónia, e aí surge uma nova reconfiguração do espaço, prolonga-se muito a zona ribeirinha. Toda a área do Campo das Cebolas e a Rua da Alfândega foram aterradas nessa altura; aí construíram-se (embora fossem uma espécie de barracas) o Mercado da Ribeira Velha onde se comercializavam produtos hortícolas e piscícolas, sobretudo; mais tarde, já depois do terramoto de 1755, houve novamente uma grande alteração urbanística com a construção do cais pombalino. O mercado da Ribeira Velha desapareceu, pelo menos ao ar livre; na zona do Campo das Cebolas existia um bairro habitacional (as Casinhas do Senado). Já no final do século XIX e início do XX, nova grande transformação quando se procedem aos grandes aterros para a construção do Porto de Lisboa com todas estas docas que temos desde Belém até Santa Apolónia. Foi nessa altura que foram demolidos os edifícios construídos na segunda metade do século XVIII".

"O que conseguimos ler é isso, essa evolução, essa transformação e utilização do espaço. Uma grande alteração desde o que era a realidade no século XVI", sintetiza. E que a partir do próximo verão terá mais uma camada para contar.

Informações úteis:

Visitas guiadas às escavações nos dias 13, 20 e 27 de janeiro, às 12.00

Ponto de encontro no Campo das Cebolas

Para maiores de 12 anos

Inscrições gratuitas através do site emel.pt